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Do fogo ar à terra água.
Da intuição matéria à razão espírito.
Conto histórias com saias, painéis e guarda-chuvas. Belos objetos cenários que eu mesma confecciono costurando, bordando, pintando. Uso técnicas que aprendi durante uma vida compartilhada com uma mãe artesã dos tecidos, dos fios e das lãs.
Criava certa surpresa quando respondia àqueles que se admiravam com a beleza do trabalho que o difícil não era fazer o objeto, memorizar a história ou narrá-la, mas sim escolher o conto, porque esse tinha que ter um caminho. Como libriana da metade do segundo decanato, apenas sorria quando outros contadores me diziam: “todas as histórias têm um caminho, isso é fácil”, e intuía que não tinha me expressado direito. A história boa precisava não de um caminho, mas de o caminho, isso sempre soube.
Aprendi com a prática que muitas das histórias que contava tinham a mesma estrutura. Parecia pra mim que era como se águas de cores diversas se deitassem sobre o mesmo leito de um rio ou veículos de diferentes eras se movimentassem pelo mesmo desenho de estrada. Ao comentar isso com uma mestre, recebi um tesouro: “A Jornada do Heroi”, resposta racional à imagem que intuía, tema de um livro escrito por J. Campbell em 1949, no qual é descrita a teoria do Monomito: a que existe uma única história, escrita e reescrita por todas as civilizações que um dia passaram sobre a Terra.
São aspectos dessa jornada que deixo aqui. Essas ideias não são minhas, claro, mas também não são Joseph Campbell, de Christopher Vogler, Vladimir Propp, ou de C. G. Jung, de quem roubei a sistematização das palavras. São de iluminados de diferentes povos, de diferentes tempos, de diferentes terras, que esculpiram suas narrativas sobre o mesmo esqueleto, sobre o mesmo círculo sagrado.
Poderia resumir “A jornada do herói” em pouquíssimas palavras: determinado fato leva uma pessoa aparentemente comum a uma grande aventura; por necessidade esse protagonista ganha ajuda mágica, vence o vilão e retorna pra casa com um elixir que salva seu povo e depois se transforma em mestre sábio. Seria só isso: estrutura básica dos mitos, dos contos de fada, da maior parte dos filmes e dos games da atualidade se não fosse isto: “A jornada do herói” é uma tentativa de resposta a uma pergunta que o ser humano sempre se fez em qualquer tempo, em qualquer lugar: QUEM SOU EU E O QUE ESTOU FAZENDO AQUI.
Como foi nessa busca que religiões, rituais, crenças, mitologias, mística, astrologia, alquimia, antropologia, psicologia, filosofia, tarot, (…) ganharam corpo, é impossível não passar por todos esses temas quando formos falar sobre a jornada do herói. Porém lembro que não é intenção desse material criar polêmica ou explorá-los é apenas abrir portas para a compreensão da jornada, tendo em vista a Contação de Histórias. Só deixo uma advertência: se você leitor conseguir fazer outras relações, não é devaneio seu, nem meu. É a única história contada pela humanidade. É a jornada.
Para escrevê-la o Eterno teve o céu como suporte
as estrelas como tinta;
para lê-la a humanidade sacou
sua mais poderosa arma:
a narrativa
A busca por “quem sou eu e o que faço aqui” nasceu junto com o ser humano. Foi olhando para o céu e para os ciclos de morte e vida das estações do ano que surgiram as primeiras respostas e, claro, as primeiras narrativas, pois não demorou muito para que os desenhos das estrelas e do caminho percorrido pelo Sol e outros navegantes do céu fosse associado às estações do ano e desta relação brotassem histórias fantásticas de deuses e heróis e suas façanhas nos céus e na terra. Essas respostas, então, são simbólicas. Na verdade, é uma única resposta, revestida por diferentes figurinos: o monomito (uma sequência fixa de ações realizadas heróis de diferentes épocas e lugares, que contém um único significado: o segredo da existência humana). Provavelmente suas primeiras manifestações foram nos rituais, para depois ser a base das religiões. Se configurou como arte, filosofia e, mais recentemente, como psicologia.
Se você entende um pouco da astrologia, já deve ter percebido que a jornada está escrita no zodíaco sim. Agora, se você é como eu e não lê nada no céu, não pare a leitura por aqui, pois meu interesse é apenas nas histórias contadas a partir das ilustrações estelares e dos ciclos da natureza, nos mitos, nos contos de fada e em outras narrativas heroicas.
Intuitivamente muitos mitólogos, poetas, escritores, artistas, cientistas, contadores de histórias perceberam essa estrutura. J. Campbell a sistematizou, publicando-a no livro “O herói de mil faces” (1949); é inspirada nessa sistematização que apresento a jornada. Como o presente trabalho está atrelado à contação de histórias, vou procurar relacionar a jornada à minha experiência.
Da terra à terra, do pó ao pó.
Termina onde começa
não como inicia.
O tédio da rotina agora é vitória,
paz da conquista.
Toda narrativa mítica começa no marasmo do dia-a-dia. No era mais uma vez, num dia, dentre outros tantos dias, de muito tempo atrás. Um mar em calmaria e conformidade. Até que surge a pergunta “o que estou fazendo aqui”, que miraculosamente se transforma em uma onda, um balançar que repercutirá em todo enredo, levando a um final esperado. Temos aí a jornada, que coloquei abaixo, nomeando as etapas com o nome dos signos do zodíaco. Lembro que as narrativas foram construídas intuitivamente (pelo menos eram), por isso essa estrutura não é rígida feito vidro, é adaptável como o bambu que não se quebra com o vento, mas se molda a ele, e que a criatividade humana é inesgotável e a jornada é mais expressa na energia da etapa do que nos acontecimentos.
ÁRIES
Há um herói desgraçado, que tem falta de algo, um problema, uma ferida. Pode ser que tenha origem nobre ou algo misterioso marcou seu nascimento. Pode haver uma falha trágica, um erro, um acidente, uma coincidência, uma missão. Há algo valioso em jogo e o herói toma ciência. Geralmente fica claro um problema material e um moral do herói. Enfim, há um chamado, por um acontecimento ou pessoa – um arauto.
TOURO
Há uma recusa ao chamado. O herói se preocupa com sua vida ordinária. Reluta, mas começa a se provir de recursos. É momento de cultivo, não de conquista. Este ainda é um período para captar recursos materiais e emocionais. Geralmente um acontecimento reforça que o chamado é um dever.
GÊMEOS
A curiosidade do herói abre caminhos, o faz conhecer pessoas e mentores. Pode ou não haver conflito, pois nem sempre o mentor é bom; Há um redirecionamento dos desejos e das necessidades; A realidade mostrada, incentiva a continuar. É um momento de locomoção e aprendizado.
CÂNCER
No limiar entre dois mundos há um guardião, geralmente oposto ao herói, que acaba “treinando” este herói, que entra no mundo desconhecido e conforme vai explorando esse mundo, explora a si mesmo, passa a se conhecer.
LEÃO
Agora há a entrada no novo território. Surgem novos amigos, inimigos, regras, pedidos de ajuda que devem ser atendidos. Aos poucos vai assumindo responsabilidades e se tornando HERÓI, se mostrando pro mundo.
VIRGEM
Surgem provas, tarefas simples, que mais parecem treinamento; o herói ganha respeito, sabedoria; toma ciência do que vai enfrentar (acha corpos e caveiras) e se prepara com saberes específicos. Aqui a aprendizagem mostra que a força já está no herói, não mais no mentor. O herói não é mais vítima do acaso, planeja a ação.
LIBRA
O herói adquire consciência real do perigo e ganha humildade. A intuição vem ajudar; máscaras são trocadas, surgem novas missões e herói percebe que vai ter que entrar no covil sozinho. Se aproxima do monstro e algumas vezes entra na pele ou na roupa do inimigo. Cumpre as provas finais e ganha armas mágicas. Aqui o herói abre mão do EGO, mas sem perder de vista sua essência.
ESCORPIÃO
Herói enfrenta a sombra (a personificação do seu medo). Combate com o monstro, no centro do covil. Há morte real ou simbólica e ressurreição do herói transformado . Há luta da personalidade antiga com a nova. Às vezes há a morte de um companheiro ou mentor. Pode haver personagem testemunha, que volta pra contar. Um novo herói renasce.
SAGITÁRIO
Herói percebe que precisa voltar, muitas vezes fica em dúvida. Ele já transformado, planeja. Há a transformação do conhecimento em sabedoria. O herói guerreiro dá lugar ao herói sábio. É hora de limpar o cheiro da morte; se o herói morre realmente sobra a lembrança de seu sacrifício. É hora de voltar com o elixir.
CAPRICÓRNIO
Também é difícil, pois a sombra ainda está no encalço. Amigos podem morrer. Fuga mágica, pode usar presentes que ganhou. Surge um novo objetivo, mais virtuoso. Se olhar para trás fica preso, vira estátua de Sal. Se para aqui vira tirano. Recebe responsabilidades, poderes materiais.
AQUÁRIO
Se torna rei ao dividir o que aprendeu. Nem sempre é fácil pois seu povo não aceita o novo. Não precisa mais ser o centro das atenções. Quer ter direito à liberdade. Pode se sacrificar pelo coletivo. É o momento da guerra social.
PEIXES
Volta ao ponto de partida misturado à multidão. Pode ficar em comunidade ou partir para novas aventuras, existir recompensas ou punições. O herói é sensível ao que está ao seu redor, se tornou um ser místico, espiritual, virtuoso. É agora o mentor. A história pode se fechar ou ficar aberta. Início pode se repetir com outro desfecho. Mostra-se uma nova fase da vida. Há um sentimento de completude. O herói se funde à multidão.
Muito resumidamente essa é a estrutura da “jornada do herói”. Uma crise que mexe com a vida de pessoas/personagens e as faz agir. Porém não é só energia desse movimento que faz parte da jornada. A energia dos agentes da ação, expressa nas personagens, nos objetos e nos lugares, também é componente das narrativas intuitivas/instintivas. Assim como as civilizações primordiais olhavam para os céus para responder às grandes indagações da existência, também olhavam para dentro de si, para as forças que movem o ser humano. E como uma imagem explica muito melhor o que não é compreendido, os personagens, os lugares e os objetos se tornaram símbolos para os diferentes aspectos da psique (mente ou alma, como você, leitor, deseje).
O de cima está embaixo,
o de fora, dentro. Reflexo criado, desenvolvido,
evoluído: não importa
se o alvo é o centro.
Antes de continuar, preciso fazer um parêntesis: a jornada é comum a todos os povos, encontrada em todas as civilizações, já o símbolo, apesar de também ter uma essência universal, usa a roupa da cultura e do local de onde se transformou em palavra: o Sol implacável dos egípcios tem um valor simbólico diferente do raro Sol dos nórdicos, apesar de os dois serem vida, iluminação.
De maneira rudimentar poderia colocar que a estrutura da jornada está relacionada aos movimentos dos astros e da natureza, enquanto a força das personagens, dos objetos e dos lugares, são facetas da mente humana. A fusão desses aspectos intuitivos das narrativas, aos aspectos racionais (a sabedoria de vida e o saber acumulado por gerações), formam as façanhas dos heróis, os mitos, os contos de fadas e muitos dos épicos descritos em livros e roteiros de teatro, games e cinema.
Ingênuo,
Guerreiro,
Herói,
Mestre:
caminhante da jornada
que feliz encontra
fragmentos de sua alma,
lhes conhece o nome,
lhes toma como aliados
para juntos e inteiro,
se sacrificar, renascer e servir.
Exploraremos, a partir daqui, o valor simbólico de alguns elementos comuns a muitas dessas narrativas, lembrando que não estão atrelados a apenas um personagem ou a alguma coisa. É muito mais uma energia que flutua pelo conto do que um modelo rígido. Por exemplo, a energia do herói pode estar diluída em três personagens diferentes: ao trilhar a jornada o primeiro erra, mas aprende algo, o segundo incorpora a aprendizagem do primeiro, mas morre, e o terceiro, já sábio, chega ao destino.
Comecemos então pela energia ensolarada do herói protagonista: geralmente é uma pessoa que destoa do grupo, que se separa dele, se transforma, e transforma esse grupo. É herói porque se abnega de si próprio e se sacrifica em prol do outro. A sua busca, a princípio é por algo material, mas que logo se transforma na busca da própria essência. Quando desce ao mundo mágico, entra em seu próprio inconsciente e se encontra com seus medos, traumas e angústias, os incorpora, se transforma. Ele é feliz quando encontra as partes que faltam à sua alma fragmentada e trabalha em prol da felicidade do reino.
A energia do arauto chama à aventura, anuncia a necessidade de mudança. Pode ser personificada em alguém, em um objeto (uma carta, por exemplo), ou um fenômeno da natureza (um furacão). O arauto personifica o mensageiro, o próprio Hermes, único deus que tem autorização para circular pelos três mundos (céu, terra e submundo). Merlin, Dumbledore, Gandalf, são exemplos do arauto.
A do mentor dá presentes, aconselha. É a consciência e a intuição que colocam a história em movimento. É o sábio, que um dia já foi herói, que ensina e protege por bem e, às vezes, por mal. É Odim, Obi-Wan Kenobi, Severo Snape, professores, magos que acompanham o herói.
A da conquista é aquela que destrói obstáculos, a competência que aflora num momento de crise, que dá vontade, força, direção. É a que comanda a batalha. É a coragem. É São Jorge ou Ogum personificada.
A energia do antagonista são os obstáculos, os medos, os traumas, os demônios, os sensores. É o confronto com ela que leva ao ouro, ao elixir. É a madrasta, o vilão, que criam o herói (Harry Potter só se tornou herói porque Lord Voldemort lhe possibilitou isso), que também nasceram com vocação para ser herói, mas não conseguiram sair da caverna sombria, por isso se tornaram vilões da própria história e da história do reino.
E para encerrar, ainda há duas energias que quero elencar: são as femininas que passam pelas narrativas: a do amor sensação, ligado a beleza, satisfação e matéria e a do amor espiritual, maternal, dos sentimentos, do cuidado e do conforto.
Essas são algumas pistas do que as imagens revelam. É claro que uma construção que durante 40 mil anos foi burilada, contém um universo incalculável de possibilidades, porém é inegável que a jornada do herói é a jornada de cada um de nós: que durante a vida amadurece, se transforma a partir do agir no mundo, do trilhar a estrada que a vida dá, a partir da própria vontade e, principalmente, do encontrar o outro; ou que durante o caminhar fica preso no amargor da depressão, dos traumas e das angústias e que precisa do outro (e de muitas histórias) para a sua redenção.
Contador de história, afilhado Mercúrio,
capta almas e as leva pro lado de lá.
Bruxo ou ancião pelo instinto guiado
ou pela sabedoria conduzido.
Artista consciente que pelo inconsciente leva ao que há.
Desde que o ser humano começou a contar histórias percebeu que elas encantam. Algumas mais, outras menos. Algumas agarram um tipo de ouvinte, outras, outros. Pra falar a verdade, não conheço contador de história que não escolheu seu ofício por causa disso: pelo encantamento do encantado e do próprio encantador.
Se você, leitor, não conta, pode achar o parágrafo acima prolixo. Porém, se é artista da narrativa oral, sabe do que estou falando. Ao contar e ao ouvir histórias o tempo e o corpo do aqui e do agora deixam de existir parcialmente e dão lugar a uma semiconsciência, a um sonhar acordado.
Agora você deve estar se perguntando: e o que isso tem a ver com a Jornada do Herói e a contação, objeto estudo desse texto?
As estruturas e as energias da jornada são as mesmas do inconsciente de cada um de nós. É como se cada ser humano tivesse dentro de si uma harpa, com essas energias ali, retesas. As narrativas míticas fazem essas cordas soar, ativando a nossa natureza humana. Cineastas e designers de games sabem disso, alguns tiranos também; o contador de histórias precisa ter plena ciência, se optar por ser o artista da palavra, não animador de festas, se desejar ficar na memória e não ser um simples passatempo interessante.
Se o contador de histórias compreender que um conto de fada não é uma história de amor, vai ter competência para escolher belas histórias que encantem por sua valoração simbólica, mesmo que não consiga transcrevê-la em palavras racionalmente elaboradas, mas sim intuitivamente sentidas. Sua performance será outra, com movimentos de expansão quando necessário e de introspecção quando preciso. Vai saber o que agrega e o que dispersa, o que une e o que separa, o que dizer e quando calar.
O contador, ser de carne e osso, em frente a audiência
se coloca. Fala de si,
fala do mundo, fala das histórias. Respira fundo,
se abraça ao herói
e o entrega: egrégora.
O contador de histórias que tem ciência do seu papel secular, sabe de que sua missão do mundo é conectar (vou usar esse verbo como intransitivo, o complemento é seu leitor). A ciência das energias da jornada pode ajudar, e muito nesse trabalho. Deixo aqui algumas pistas, que jamais devem ser encaradas como fórmulas:
Etapa ariana: Centrada na conexão do ouvinte ao herói. Somente as descrições necessárias são realizadas. O ouvinte precisa se ver herói. A história começa na calmaria e uma crise, um balançar de repente, ressoa por toda a narração, como uma onda de baixos e altos, contrastes. O herói, centrado no próprio ego, com muita energia carnal, apresenta um problema material e provavelmente outro moral, se lança à aventura. Toda a narrativa tem um crescente, um movimento de expansão. A motivação do herói é muito clara e universal: uma vingança, um ideal, um desejo, … Agora é hora do ouvinte criar um pacto com a história, por isso sempre há um paradoxo, algo incompreensível para a razão: a mãe que manda os filhos para a floresta sombria, a princesa que dorme por 100 anos,…
Etapa taurina: A certeza se transforma em dúvida. O herói volta a se preocupar com a própria subsistência. E o ritmo de narração fica mais introspectivo, com a performance muito centrada. Porém a consciência do dever vai tomando corpo.
Etapa geminiana: A narração se movimenta, a curiosidade entra em cena. O narrador explora novos espaços, os gestos apontam coisas próximas. Os olhos passam a ver detalhes da jornada que já começou. As imagens são muito bem descritas. É o momento das sensações.
Etapa canceriana: É o ponto de virada, aqui a aventura começa, mas não o movimento, tudo é mais sombrio, místico. A emoção vem à tona. Momento do sentir. Movimento de contração.
Etapa leonina: Centrada no querer. O intimismo da etapa anterior dá lugar a uma tentativa de cativar quem está a seu redor. Narrador lança energia na assistência. Projeta a voz para longe. O EU ainda é muito forte. O contador vira o centro. Movimento de Expansão.
Etapa virginiana: O movimento se retrai. Tudo volta para perto, pois é momento de se organizar, melhorar as coisas, ver se está tudo certo. O herói fala consigo mesmo.
Etapa libriana: Centrada no ponderar, na dúvida. O herói percebe que precisa mudar, encarar o perigo de forma diferente. Precisa perder o medo; a energia é fraca. Certo movimento de expansão, com vontade ainda fraca.
Etapa escorpiã: Centrada no desejar, o sangue vem pro olho do narrador. Aqui se faz o que é preciso, doa a quem doer. A narração ganha ferocidade, uma busca pela verdade. Oprimir emoções do público para que venha à tona com força é uma boa opção. O herói precisa ser ativo e percebe que sua verdadeira arma não é aquela que está portando, mas o que carrega em seu coração. Ele é quem luta pela vida, perde tudo, se despedaça para que consiga chegar ao que não se pode despedaçar. O movimento é de força.
Etapa sagitariana: Narrador cresce, se ilumina. Momento do clímax, quando a carne ouve a história e a tensão se alivia. A transformação do herói é muito clara. Sua postura muda, até seu cabelo muda (perceba isso nos filmes). Fica nítido que adquiriu sabedoria, espiritualidade, grandiosidade. Movimento de expansão para longe.
Etapa capricorniana: A certeza do movimento anterior pode se transformar em dúvida: e se o prêmio fosse só seu? Movimento de contração. Aqui o herói já é dono da virtude que a história explora, porém pode ainda usá-la em benefício próprio. Coragem, sabedoria, ouro, podem ser usados para si ou pro reino.
Etapa aquariana: O coletivo ganha força, a energia do contador inunda a assistência. O movimento de expansão.
Etapa pisciana: Centrada no ACREDITAR NA TRANSCENDÊNCIA . Aqui há necessariamente a resposta à questão inicial. Se o ciclo se fecha fica clara a maior virtude humana: FRATERNIDADE. Movimento de Comunhão.
Acima há uma tentativa de esboçar o movimento de energias presente na contação de história. Do ir e vir da narrativa e do contador, das nuances e dos contrastes. Certamente nem todas as narrativas passam por todas as etapas, nem passam nesta ordem necessariamente, porém compreender essa estrutura básica auxilia na escolha da história a ser narrada, tendo em vista a quem será narrada, auxilia na produção de recursos materiais (se for o caso), na memorização da história e na construção da performance.
No parágrafo anterior esbocei rapidamente os objetos de estudo do narrador oral e como a compreensão da jornada pode ajudá-lo em seu trabalho. Nas outras etapas desse estudo, serão abordados esse e outros aspectos da contação de história enquanto linguagem artística, que visa, em última instância, humanizar.
Por ora, vamos conversar sobre o que os contos contam, lembrando que o contador descortina racionalmente esses véus para si e para melhorar seu ofício, jamais para seu ouvinte, que deve descortina-los intuitivamente, até onde lhe for permitido.
No poema e nas nuvens,
cada qual descobre o que deseja ver. (Helena Kolody)
Não resisti e coloquei versos da poeta paranaense porque as narrativas míticas (incluindo aí também os contos maravilhosos) podem ser interpretadas pelo viés da antropologia, da astrologia, de diferentes linhas da filosofia, da psicologia e da psiquiatria, da arte, da literatura, da História, da teologia, (…). Eu, professora contadora de histórias, escolhi uma dessas visões porque desde que comecei a narrar para adolescentes, algo me inquieta: o que é isso que faz essa meninada olhar pra mim, com tanto desejo, sem que eu
tenha esforço? Encontrei muitas respostas. Acreditei em várias, refutei outras tantas.
No mito e nos contos,
Descubro o que desejei ver.
Pra começar, deixe-me colocar uma interpretação dos contos de fada que me desestabiliza: a que as princesas são passivas, “bocós” que ficam esperando um príncipe encantado e que passar essa mensagem seria a intenção dessas histórias milenares e de suas releituras feitas pelos Grimm, por Disney e tantos outros. Não vou justificar agora por que fico irritada quando escuto esta afirmação e com vontade de mandar quem a fez, estudar. Creio que dou conta disso a seguir, quando sistematizo o que aprendi estudando Jung, Campbell, Propp, Steiner, e seus seguidores (ver bibliografia), nos cursos da Casa do Contador de Histórias e nas palestras de Lucia Helena Galvão e Talles Menegon.
Cada narrativa é a representação simbólica de algo que aflige o ser humano, de algo que não pode ser explicado racionalmente, mas intuído, se transformou em imagem e depois em façanha fantástica. Os mitos tratam de questões existenciais maiores e geralmente dão a base das religiões e dos sistemas exotéricos e esotéricos.
Boa parte dos contos maravilhosos ou contos de fadas, são derivados dos mitos, tanto é que se assemelham muito a eles em estrutura ou temática, porém estão ligados a questões mais individuais, ligadas ao quem sou eu e ao que estou fazendo aqui. Representam, de maneira geral, a dualidade matéria-princesa X príncipe-espírito e têm como chave o casamento feliz dessas duas facetas do ser humano.
Sob essa perspectiva, não podemos dizer que essas narrativas passam uma mensagem subliminar de passividade e espera, muito pelo contrário, pois o protagonista vai ao dragão e o mata; se ficar na vila o dragão vem, o mata e destrói a vila; aprende e recebe a proteção de muita gente, passa por muitas provas, entra no covil solitariamente, derrota sozinho o monstro e depois retorna e compartilha sua conquista. Cinderela contraria a madrasta, Branca de Neve adentra a floresta e a casa dos anões, Bela amansa a Fera. Portanto a felicidade é fruto da conquista, da ação no mundo. É fruto do trabalho e não da espera. A felicidade não está no encontro com o outro, mas consigo mesmo, no amansar seus dragões e no polir suas pérolas.
Outro dado fundamental para a compreensão das narrativas maravilhosas é que todos os personagens são um só e cada história é um período de sua vida, um dia, uma fase ou a vida toda. Os problemas seriam as crises materiais e psicológicas por que passam, os vilões seriam seus medos, seus traumas, seus instintos, que precisam ser enfrentados e que uma vez controlados levam à felicidade. Só para exemplificar: a madrasta da Branca de Neve, nessa perspectiva é a personificação do ciúme, do medo da perda da juventude, do apego à beleza material.
Ou contamos histórias porque somos humanos ou somos humanos porque contamos histórias.
Homo Sapiens Homo Narrans
Acho que com poucas palavras dei pistas de como muitos contadores de histórias encaram a matéria-prima de seu ofício. Essa é uma possibilidade, a que melhor responde, pra mim, minha indagação inicial. É uma interpretação simbólica, intuitiva, portanto, nunca feita com o ouvinte, mas que guia e justifica a performance do narrador oral que sabe que é o inconsciente do ser humano que o faz largar o corpo e o tempo e entrar na história, que é a metamorfose da cinderela quando se casa com o príncipe que faz a carne arrepiar.
É por isso que para contar histórias o contador precisa ser sujeito. A partir de escolhas conscientes, elaborar seu ofício. É por isso que um contador também precisa estudar Filosofia, Psicologia, Antropologia, Teologia, Arte. É por isso que muitas vezes escuto a afirmação: “não sabia que contação é isso”, nos cursos e oficinas que ministro.
A força está em você. Ocupe seu lugar no mundo,
trilhe sua jornada.
Semeie histórias de germinar esperanças
e fraternidade colher.
Seja em que cultura for, em que época ou em que lugar, o contador de histórias é um ser sábio, portador de um poder xamânico, de um elixir que faz compreender a vida e a nós mesmos. Em algumas sociedades esse poder é dado pela intuição e pela vida vivida, pelo aprendizado e pela experiência com o grande mestre. Porém, como o contador contemporâneo, urbano não tem como viver tudo o que precisa na carne, precisa estudar humanidades e compreender como as narrativas e o seu valor simbólico estruturam a psique e a cultura humana.
Quando o contador compreende que é com a linguagem simbólica que trabalha, percebe-se membro de uma confraria que foi fundada no dia em que pela primeira vez um ser humano olhou pro céu, apontou uma estrela e imaginou algo além do que viu e passa a fazer escolhas conscientes, que refletem a jornada do anthropos na aventura que é o viver.
REFERÊNCIAS
Esse texto foi estruturado principalmente a partir da palestra de Talles Menegon, “A astrologia e a jornada do herói”.
CAMPBELL, Joseph . O HEROI DE MIL FACES – 1ªED.(2007).
Editora: Pensamento
PROPP, Wladimr. A MORFOLOGIA DO CONTO MARAVILHOSO. Editora: CopyMarket.com, 2001 (1ª ED: 1928)
. Raízes históricas do conto maravilhoso. Editora: Martins Fontes (2003). (1ª Ed: 1946)
VOGLER, CHRISTOPHER. JORNADA DO ESCRITOR: Estruturas míticas para escritores. NOVA FRONTEIRA, Rio de Janeiro, 2006 | 2a. Edição revista e ampliada
JUNG, Carl Gustav (ORG). O HOMEM E SEUS SIMBOLOS. Editora HarperCollins Brasil – 3ªED.(2016)
No link abaixo você encontra os vídeos de Lúcia Helena Galvão:
https://www.bing.com/videos/search?q=nova+acr%c3%b3pole+lucia+helena+galv%c3% a3o+heroi+de+mil+faces&&view=detail&mid=AFE47EB22D04C8FFE26CAFE47EB22D0 4C8FFE26C&&FORM=VRDGAR