A arte da arte
do contar
e do ouvir histórias
(re) liga ao que se esconde.
Tentei começar esse texto com um conceito bem bonito para arte. Como não consegui, vou pedir a você que a conceitue, com ou sem ajuda. Vai lá que te espero.
Pronto. Agora me deixe conceituar também. Se você não concordar comigo, não tem problema, afinal você já tem o seu conceito.
Arte é ideia sem conceito que empresta as formas da cultura para se tornar matéria, mesmo que imaterial.
Desculpe-me se meu conceito lhe parecer simplório. Ele é a minha síntese da Qabalah, da Psicologia Analítica, do conceito de arquétipo. Ele, portanto, esconde o aspecto numinoso da arte, que a liga ao sagrado.
Vamos a analogia:
Sabe quando você sonha, esquece e lhe sobram fragmentos de imagens com os quais você tece narrativas? Imagine que quando uma alma põe o pé na terra também só se lembra de fragmentos do lado de lá (onde também se esconde a ancestralidade), assim como só se comunica com o lado de lá por intuição. Esses fragmentos imagéticos e essa intuição, são as ideias sem conceitos, que talvez possamos chamar de arquétipos, são as pulgas que não vemos, cheiros sem fragrância, que incomodam muito, que precisam ganhar forma e, para isso, ganham as roupas da cultura, feitas com a beleza dos tecidos coloridos e as técnicas de corte e costura detalhadamente aprendidas e reelaboras pelos couturières.
Nesse sentido, a experiência estética é o sentimento provocado no criador e no observador/fruidor do objeto artístico. É o prazer causado pela forma da não forma. Vygotsky chamava isso de empatia. Muitos chamam de conexão com o sagrado.
A arte, portanto, mobiliza porque mesmo quando retrata uma realidade que se vê, mobiliza uma realidade interna.
É por isso que a arte humaniza. Ela não ensina, não moraliza. Ela mobiliza, conecta pessoas a outras pessoas e pessoas a si mesmas. É nessa perspectiva que contar histórias é Arte. É arte porque é troca real e profunda entre um contador e um ouvidor, é troca da pessoa com quem ela esconde sob camadas e camadas de peles e roupas.
A arte onde está?
No contar ou na história?
Está na imagem, metáfora,
metade da viagem entre a ideia
e o conceito,
única língua que a alma lê.
Creio que nestas duas primeiras páginas desse texto já deixei claro que a arte da contação está no ato do contar. Preciso agora esclarecer porque as histórias ancestrais, contos populares, maravilhosos, de ensinamento e mitos também são Arte. Quando a “não forma” precisa se manifestar, ela pode se materializar em imagens, em sons, em movimentos, em …, e em personagens, que claro, para se expressarem, ganham um espaço, um enredo e um baita problema, que precisa ser resolvido em uma jornada de conquistas materiais e de, sobretudo, aprendizagem.
O que devora
é a sombra
que vive em si. Desconhecida, disfarçada, protegida, serpente
de mil cabeças, que só se rende à luz.
Sabendo que a arte e as histórias são um espelho da psique, vou adentrar distraidamente num universo junguiano e explorar as histórias enquanto símbolos.
Para isso vou começar com uma imagem: alto mar, junção do céu azul e um oceano majestoso; a luz do sol atravessa a lâmina d’água e aos poucos vai perdendo suas notas até sobrar a escuridão: nossa mente. O que existe no fundo mais profundo do mar nos é inacessível – assim como Zeus era a Sêmele – é calda de matéria gasosa, que conforme vai se aproximando da faixa iluminada se aglutina e forma bolhas, símbolos que emergem à consciência. Abaixo da lâmina d’água o espaço com luz é bastante pequeno, o peso da escuridão torna o mergulho insuportável à consciência, mesmo que essa navegue no mais tecnológico submarino; apenas o símbolo possui uma couraça forte o suficiente para abrir o caminho. As imagens das narrativas, portanto, têm a capacidade para entrar e sair do inconsciente, alimentando-o e libertando-o, pois, passam prazerosamente, feito fantasmas, pelas paredes do véu do racionalismo.
O contador curandeiro
ajuda a envelhecer
queijo curado, cuidado e maturado
pelo tempo e por dedos atentos
a cheiros, cores e sabores.
Abridor de caminhos,
pescador de tesouros,
de afluentes de águas
novas, criativas e cristalinas.
Então contador curandeiro, tenha isso em mente: a sua matéria-prima é a imagem. É ela, a projetada na mente pela palavra, que navega às profundezas do ser humano, e é ela, que emerge de lá para depois tomar a forma de narrativa.
E sabe por que o ser humano precisa de símbolos a vida toda? Porque o inconsciente não é nada pacífico, ele é um turbilhão, sempre em movimento, sempre em transformação. Quando o consciente não dá conta de acompanhar o que acontece nas sombras, surge a crise e a necessidade de uma jornada para que, depois dela venha a calmaria. As narrativas são, além de símbolos desse processo, um guia com lanterna na mão, que mostra o caminho, ilumina aspectos que precisam de luz e nos fazem encontrar o que precisamos para retornar ao equilíbrio.
As imagens
abrem caminhos
equacionam
deixam ir e vir
o que é preciso.
Reafirmo que o ser humano precisa produzir imagens, precisa ter contato com símbolos para ter uma relação saudável com seu inconsciente e com as forças que nele operam. É de lá que as grandes soluções criativas para os dilemas emergem.
As histórias arquetípicas narram, justamente esse processo e mergulho nessa caverna enigmática de nossa psique. Imagine um reino seco, com um rei velho ou ausente. Essa terra árida precisa da energia nova de um príncipe que parte em uma jornada, coloca ordem no caos e retorna com o elixir que salvará o seu reino, tornando-se rei. Essa é a metáfora para este mergulho. Cada uma das personagens é um aspecto da realidade interior de uma pessoa. Cada chamado à aventura é a psique clamando ao eu consciente que lidere uma dura e dolorida aventura de salvação. Cada viagem é um caminho iniciático rumo à integração.
A boca faca
fala lança
e alcança a alma
Assim como meu chapéu tem três pontas, a contação é uma tríade composta pelo contador, pelo ouvinte e pela história. Para que haja contação são necessários esses três elementos: um contador, que usando uma história (ainda não estou certa desta subordinação), atinge, de certa forma, um ouvinte.
Esse atingir pode se dar de diferentes formas: emocionando, relembrando, revivendo. Porém existe um tocar que não se enquadra em nenhuma dessas formas racionalmente explicáveis, justamente porque é um atordoamento dos sentidos, é um afastamento do corpo, é uma alienação ao aqui e ao agora… Alguns o chamam de experiência estética, outros de iluminação, outros de ato numinoso, eu e muitos, de encantamento de alma.
E é sobre esse encantamento do ouvinte que vamos conversar. Primeiramente me deixe brincar de poeta e descrever, a partir de uma imagem, um conceito para esse movimento.
Imagine um ser, humano, com algo sem forma dentro de si. Esse algo teima em sair, mas para que aconteça, esse ser, humano, precisa lhe dar forma. E realmente faz isso emprestando-lhe as substâncias e ferramentas que tem à mão, que foram lhes dadas pelos outros seres humanos. Essa massa disforme mas plena de significado, agora emoldurada sai e entra em outro ser, humano, e mesmo fantasiada encontra ali seu par e o acorda…
Já havia citado neste texto que arte pra mim é isso. É a forma do que não tem forma. É emoção, sensação, pensamento, intuição transformados em símbolo, em linguagem, em instrumento, não em palavras. E a história também é isso. É a personificação dessa não forma, é a transformação dessa não forma em imagens que ganham movimento, narrativa.
Contação,
ato de profunda ação,
simbólico, vivo,
artefação
Uma criança transforma sua angústia e seus medos em uma bruxa ou em um lobo com muita naturalidade. Como cria uma imagem, uma personagem, passa a lidar com esses sentimentos de forma mais lúdica e até brinca com eles, lhes dá uma narrativa e magicamente resolve o que precisa ser resolvido. O adulto também brinca assim, não de faz-de-conta, mas de fazer arte.
Por falta de ferramentas para a criação, a criança brinca com o brinquedo alheio: seus medos se manifestam quando vê um palhaço, ouve uma história de lobo mau e são superados quando os vilões são derrotados. O adulto frui arte da mesma forma. É tocado com a sensibilidade alheia, transformada em uma criação artística. Vygotsky chamou isso de empatia (1999, pag. 158), uma espécie de alargamento da realidade, uma incorporação de experiências, por meio da arte, que ilumina o nebuloso, numinosa forma de autoconhecimento.
Portanto, a audição de histórias enquanto vivência artística possui uma função organizadora da cidadela murada do inconsciente que reverbera no pensar, no sentir e no agir conscientes. A contação de histórias também dá ferramentas para quem a experimenta dê forma àquilo que não tem forma. Dá personagens à imaginação, para que esta, nelas personifique, o que precisa sair da sombra.
O tocado toca o tocante
assim como o que balança é balançado.
É onda na praia que quando vai
se mistura à que vem.
É molde formatado
pela substância que o contém.
Assim como meu chapéu tem três pontas de mesmo tamanho, a tríade da contação possui forças equacionadas. O contador também é passivo à energia de quem o ouve e a força da história está neste movimento de troca empática, onde ambos se transformam na própria história.
É por isso que cada vez que se conta uma história, uma história diferente é contada. É por isso que cada vez que se ouve uma história, se ouve uma diferente. Porque cada momento é único. Porque o eu é múltiplo, mutante, adaptável ao eu que me ouve.
guardião de histórias
filho de mercúrio
guia entre mundos
entre tempos
ensina lição de saturno
que conta a história de fora
a de dentro fica por conta de quem escuta
Contar histórias é como dançar num salão, como gingar capoeira, como onda da praia, é energia que vai e volta. É por isso que tanto o que dá como o que recebe precisam estar abertos a esse ato. Já tive experiências ruins porque a audiência não estava disponível. Foi como jogar água em uma vidraça. A história foi, mas escorreu no meio do caminho. Em outras vezes fui eu que não consegui chegar, foi como que houvesse uma represa entre a minha boca e meu ouvinte, onde a história fez um redemoinho e parou como cobra enrodilhada. O contador experiente sabe que se o bluetooth não estiver pareado, não há conexão e possui técnicas para esse engajamento, mas sabe também que às vezes não tem jeito mesmo e tudo bem.
Quando há conexão é mágico, é imágico (imagem e magia fundidos). É inexplicável. É ficar suspenso no tempo e no espaço. É formar egrégora. É conversa entre inconscientes, feita através de imagens, de símbolos.
Bruxo que canta
poesia alheia
sem conhecer-lhe a força da magia
corre o risco de virar bufão
falar palavras vento
ilusão.
Se penso em o valor simbólico das histórias e o seu papel para o narrador oral, me vem à cabeça a imagem de um feiticeiro que antes de aplicar seus unguentos precisa aviá- los e para isso, além de saber a receita, precisa saber o que é e para que serve cada um de seus ingredientes, como devem ser manipulados individualmente, quando e de que forma entram no preparo do remédio, ou do veneno. É claro que no caso do contador, o unguento, a história, ele ganhou de presente dos tempos imemoriais. Ele pode usá-la sem conhecer seus ingredientes mágicos, mas se ao aplicá-la ele usar a força individual de cada uma das imagens que conta, sua performance será mais eficaz, mais forte e acionará as mesmas forças que criaram a história que está à sua frente.
Já esclareci no início deste texto que uma história é muito mais que uma narrativa, é uma forma intuitiva e fantástica de descrever algo que não é nada fantasioso. É uma forma simbólica de descrever a realidade que vemos e a que não vemos.
A imagem acorda
forças ancestrais
invoca perseverança
transforma o drama em trama.
Antes de continuar falando sobre a força da performance, só preciso ressaltar uma palavra que escrevi no parágrafo anterior: intuitiva. Retomo que as histórias foram construídas a partir de ideias ainda sem conceito – ideia com conceito não é história, é conhecimento – mais ou menos como quando você quer expressar algo e não tem palavras e aí, então, cria uma metáfora, uma imagem. Desculpe-me se estou tecendo roupa feita, mas eu preciso, às vezes, iluminar a leitura daqueles que embarcam nessa viagem no meio da jornada. O contador de histórias narradas oralmente, se conhece esse valor, transfere para a forma de sua performance essa ideia primordial. Pode preencher pequenas lacunas ou dar ênfase a alguns detalhes que num primeiro momento podem parecer insignificantes. Sua entonação pode marcar os escondidos, seu olhar e seu sorriso podem pontuar as chaves dos mistérios. Tirar peles e roupas é ir em busca do eu verdadeiro, assim como quebrar uma nós, por isso exigem olhar e pausa expressivo. Permanecer num jardim florido é uma pesada tentação e exigem um esforço muito grande da voz e do corpo para mostrar que o herói titubeia, mas vai em frente.
O eu que conta
brinca com o mistério da existência
leva aos labirintos do esquecido
encontra o não vivido
cola com imagens:
as fatias do inconsciente.
Quando comecei a trabalhar com o valor simbólico, pedi ajuda pra Marie-Louise von Franz, Clarissa Pinkola Estés, Jette Bonaventure, hoje tento me aventurar por conta própria nesse desafio. Uso pra isso as armas mágicas que os fundamentos da psicologia analítica, da astrologia e da Qabalah Hermética me deram.
O selvagem que me segue
fala baixinho,
mostra e dá armas mágicas.
Ele foi e será sempre
a ponte para o quem sou eu.
O conto, e toda manifestação artística, é um canal com o divino que vive em mim. É pela arte, pelo símbolo e pelo sonho, o caminho do devaneio, o encontro com o sublime. As histórias ensinam a transformar o freio da energia da sina, do trauma, da sombra, em força motriz, em esperança carnal, conforto espiritual.
Foi até o alto da montanha
falar com Deus,
o que não sabia
é que Ele está nos seus.
VYGOTSKY. A estética da arte, 1999.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.