“E a história vem e você conta? E como vem, e como conta? É dom. Só pode ser presente de Deus, você com certeza tem algo diferente das pessoas normais. Não dá pra guardar uma porção de histórias nas gavetinhas da cabeça e chegar assim na hora, abrir uma gaveta e ir puxando a história… Como é que não esquece, como é que não mistura tudo?”
Esse é o comentário da maioria das pessoas que não são familiarizadas ao universo da contação de histórias fazem quando se aproximam a um narrador oral que leva pro mundo a tradição milenar que carrega nas veias.
Pois o presente texto pretende justamente desembrulhar esse presente que toda pessoa carrega, mostrar onde o contar se esconde, iluminar o caminho do despertar do contador de histórias.
No decorrer dessa escrita você leitor perceberá que trato especificamente do contador que se parece com nossos ancestrais contadores de histórias, que não sabiam ler, portanto não tinham o texto escrito para se apoiar. Só tinham a história eventualmente ouvida da boca do outro, a história transformada em memória num ato único de troca real, de vida realmente vivida pela palavra, pela imagem, pelo símbolo, pela experiência.
E experienciamos uma história como experenciamos o mundo: com olhos da mente, o pensar afiado feito espada; com as emoções e sentimentos,…, com coragem; com as sensações que nos dão a certeza do estar acordados, que nos protegem; com a vontade e a fé que regem e dão sentido à nossa existência. Experenciamos o mundo com espada, copas, ouro e paus; com ar, água, terra e fogo; com pensamento, emoções, sensações e intuição. Com os quatro aspectos de nossa psiqué, nossas armas mágicas.
A memorização e a verdade da história vêm pela imaginação, pela recriação imaginária da narrativa, afetada pelas memórias reais, das emoções e das sensações já experimentadas, relembradas pelo enredo da trama.
A habilidade imagética humana parece inimaginável ao mundo moderno, onde a imaginação necessita de um suporte que está fora do pensar, seja no livro ou nas mais diversas formas de se registrar textos, sons e imagens. Porém, existe e toda pessoa pode despertá-la, basta, pra isso, ouvir, sentir e contar.
A lanterna que empunho
é daquelas bem antigas,
feita de ar e fogo;
o mapa que leio é da época
em que as cartas desenhavam
terra e água.
A missão de minha vontade
se assenta em gêmeos –
já fui herói
que se salva e salva o mundo.
Por ora sou mentor que forma,
que coroa com capelo
heróis que vão seguir sozinhos,
escolhendo armas, caminhos e histórias.
A primeira que dica que dou a meu leitor, ávido por aprender é: experencie muitas histórias de muitos contadores, essa é a única forma de se aprender a contar; depois escolha uma história e recrie-a, use a fantasia e veja a trama das personagens em seu pensamento; já liberto das palavras que entraram pelo seu ouvido ou por seus olhos, conte a história usando as suas palavras, narre o que você viu, expresse os sentimentos, as memórias e as sensações que a história lhe suscitou. E conte-a, de verdade (a outras pessoas) muitas vezes. Perceba como aos poucos como você vai ganhando liberdade e como seu pensamento vai se estruturando para o narrar. Aprenda com essa história a contar histórias, perceba os processos mentais pelos quais você passou. E depois conte muitas histórias. É assim que nasce um contador. É assim que a estrutura arquetípica, inata, desperta e aos poucos, se desenvolve, se transforma em linguagem, em uma segunda natureza. E a história que você conta passa a ser uma memória sua, com suas verdades, suas memórias, com os cheiros, cores e sabores que você conhece.
Aprender a contar é um caminho longo, escuro e com muitas encruzilhadas. Você pode desbravá-lo sozinho, mas também pode ter ajuda mágica na jornada e ganhar lanterna e mapa. É isso que os cursos e os livros de contação fazem: cada um, a seu jeito, ilumina e encurta a jornada do contador.
Porém nunca esqueça que o contar histórias é uma atividade intuitiva e precisa parecer como tal. Reafirmo que é experienciando as verdades, as emoções, as sensações e as intenções da história e do contar que a história afeta, mobiliza memórias e sentimentos e se fixa em quem a narra, ou melhor, a imagina.
É assim que a história permanece. É por isso que o contador não esquece e não mistura as histórias que conta.
História ouvida
memória experimentada,
palavra lavrada,
cravada,
em carne transformada.
História contada .
Aprender a história é como memorizar um caminho. Imagine que seu filho se casou e foi morar do outro lado da cidade, numa região que você não conhece. A primeira vez que vai visitá-lo usa um mapa e algumas indicações. Como não conhecia o trajeto e precisou se preocupar com ele, guiou de forma descuidada, atrapalhou o trânsito. Além disso, se perdeu e precisou pedir ajuda. Por ensaio e erro, depois de muitas idas e vindas, aprendeu como chegar porque prestou atenção às casas, às lojas, às árvores. Trajeto memorizado, seu dirigir ficou mais fluido, mais competente, passou a ter liberdade de tomar outras ruas, mais tranquilas ou mais bonitas. E mais: passou a conhecer aquele lado da cidade e se localizar naquelas ruas muito facilmente. Guiou sem pensar onde virar, onde seguir, apenas foi. Agora, se tivesse ficado preso ao um GPS e não tivesse coragem para confiar em si, iria depender desse suporte por muito tempo, e percorreria sempre o mesmo caminho seco… Então, a atividade de memorizar é um ato de coragem, voluntário, libertador e de experiência estética. É um ato de recriação do discurso que faz a história se tornar filha de seu tempo, arte popular, ressoar com a contemporaneidade, se transformar em arte.
E o contador é livre?
A liberdade do contador é relativa. Ele pode criar sobre a história, não reinventá-la! Deixa explicar: a estrutura da história é fixa, imutável. E sobre isso te dou um conselho bem direto: se você precisa recriar o final da história, desista dela – é provável que você não a tenha entendido, uma vez que, se ela sobreviveu por milênios, é porque possui ressonância com alguma verdade. Agora, o contador tem toda a liberdade para bordar e rebordar esse tapete com os pontos, as cores e os fios que desejar.
Minha mãe,
crocheteira cozinheira intuitiva,
me ensinou a ver o ponto na trama
e o sabor do molho na língua.
Dizia que o trançado pedia o ponto,
e a massa pedia o trigo.
Conhecia a linguagem dos pontos e dos sabores.
Em seus dedos enrugados
conheci a técnica secreta dos poetas,
que colocam as técnicas a serviço do belo.
Contar histórias é isso:
é fazer fazendo,
é fazer sentindo.
Dona Irene, minha mãe, nascida em 1928, era artista dos fios e ensinou muita gente a “bater agulhas” como dizia meu pai. Ela não sabia ler gráficos ou receitas, porém não havia amostras que não tirasse com facilidade. Foi com ela que aprendi a ler e a tecer a trama pela estrutura e não pela sequência de pontos.
Lembro que a primeira vez que fui à Casa do Contador de Histórias me mostraram um chapéu com três pontas de tricô feito pela Sol, uma da fundadoras da Casa, que na época estava no Rio de Janeiro. Me falaram que apenas ela sabia fazer o gorro e não havia deixado a receita. A confecção do objeto era, portanto, o mistério do ponto inglês. Esse ponto eu sabia fazer e como eu não precisava de receitas, na reunião seguinte levei o meu chapéu da Sol, com suas três pontas que se alargavam, se soltavam e se retraíam, numa estrutura composta por pontos caídos, nascidos e comidos em três juntos.
Eu só consegui fazer o chapéu porque compreendi sua base mestre e depois lhe dei corpo com minha experiência de tricoteira. Se tivesse ficado presa à forma, as três pontas não teriam se formado. O aprendizado das histórias segue essa mesma estratégia metodológica. É por isso que o contador conta com os fios de seu discurso, as tece com suas agulhas palavras e sim, com seus filtros, intenções e avessos escondidos.
É claro que assim como se minha mãe poderia saber tecer casacos lendo receitas, o contador pode contar decorando o texto. São opções que cabem ao artista das mãos e das palavras. O estudo do texto é diferente do estudo da história. No primeiro foca-se a coerência, a coesão, a beleza do signo, a sequência das palavras. No segundo, as imagens e a beleza do símbolo, a fim de descrevê-las com recursos narrativos de ver e ouvir. Texto e história podem e devem se retroalimentar para embelezar a performance: palavras buriladas, lapidadas na rima e na métrica deixam as imagens mais belas, assim como essas deixam aquelas mais potentes.
Ao contador
cabe o caminho,
a paisagem,
o veículo,
a experiência da viagem.
O fim é rocha presa
no tempo do infinito.
Termino este texto reafirmando que contar e ouvir histórias é uma experiência estética, de fruição, de troca, de agir sobre o outro. O contador, nesta viagem, se ancora na história e enleva seus ouvintes mostrando, nas imagens que cria, as cores, os sabores, os cheiros do caminho; sua voz os faz sentir o frio e a dor. Seu corpo, sua coragem e seu olhar dão a certeza que o que narra é real.
CARMELO, Luiz Correia . Narração oral: uma arte performativa (2016). Em: https://core.ac.uk/download/pdf/84111534.pdf (04/04/2019)
MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004.