Um amor sem palavras

Acordava quando a primeira claridade começava a puir a noite na bainha do Leste. Mas claridade fina não era suficiente para ela. Precisava esperar o sol para poder espreguiçar todos os seus braços, sacudir a cabeleira e dar-se a conhecer.

Só então começava de fato o dia daquela sombra. A sombra daquela árvore.
Juntas desde o começo, as duas. A árvore ainda era muda pequena, sem tantas garantias de vida, e a sombra já se desenhava magrinha, contando com a resistência da outra para sobreviver. Não vinham do mesmo lugar; porém. A semente trazida por vento ou bico de pássaro que havia originado a árvore não era responsável pela sombra. A semente da sombra era o sol. Nem ela se prendia às raízes. Sequer as conhecia, tão afundadas na terra, sem luz que as duplicasse. Prendia-se ao tronco, disputando com a grama a exata linha em que ele saía da terra, sem fresta ou divisão que se pudesse ver.
E a partir do trono, desde os tempos em que nem de tronco podia ainda ser chamado, aprendera aos poucos seu ofício e sua arte.
Seu ofício não era complicado, mas exigia presteza e muita dedicação. Devia estar pronta para agir assim que a luz tocasse as folhas, e logo estender-se sobre a relva molhada a fim de prolongar a umidade do orvalho, enquanto a manhã caminhasse, cada vez mais quente, rumo ao meio-dia. Precisava tomar cuidado, para encolher aos poucos e na justa medida, até encontrar-se, na, hora em que o sol batia a pino, bem debaixo da copa. E então trocar de lado e crescer atravessando a tarde. Era essa à parte do seu ofício que mais lhe agradava, esse jeito secreto de estar sempre em movimento, mesmo quando parecia parada.
Cabia-lhe ainda acolher o gado, que gostava de ruminar protegido da luz mais forte. Abrigar insetos delicados, pálidos alguns, que não sobreviveriam ao sol. Manter a terra fresca para as minhocas. E havia muitos anos considerava seu dever dar guarida a um sapo que tinha estabelecido moradia entre duas pedras ao pé da árvore.
Não se esgotava aí seu trabalho. Ela era o lençol escuro sobre o qual os camponeses vinham se deitar quando o sol estava alto, e onde comiam seu pão, espalhando as migalhas que as formigas viriam buscar mais tarde. Era também o véu que descia dos galhos até o chão, véu que quase não se via, mas onde se abrigavam os pássaros e as abelhas e onde os frutos da árvore retardavam seu amadurecimento,último presente para o final do verão.
Este era seu ofício. Mas havia sua arte, que mais prazer lhe dava, e com a qual não parava de aprender. Eram os arabescos moventes que desenhava no chão, as tatuagens passageiras que imprimia sobre os rostos e as mãos de quem vinha sentar no seu colo. E a elegância, todo dia reinventada, com que se alongava, reta e sinuosa a um só tempo, à medida que o sol fazia sua despedida.
Embora gostasse do seu viver, era na verdade um viver muito solitário. A árvore plantada no meio da campina. Ela a seus pés. Uma ou outra árvore distante. E ao longe um bosque, tão longe que parecia mais uma mancha do que uma grande família de árvores.
Não havia sido sempre assim. Durante um período, na juventude, tivera companhia. E alegre. A partir de uns verdes de nada, crescera a seu lado um arbusto, só alguns ramos e um tufo de folhagem, mas cuja sombra gordinha roçava nela dependendo do vento, e à qual se afeiçoara como se afeiçoam as sombras. Durante um tempo longo e bom – ela não sabia m e dir o tempo em meses e anos – haviam brincado juntas, empurrando – se amistosamente, entrelaçando seus desenhos e desafiando – se ao entardecer em torneios de haviam cortado o arbusto para fazer uma fogueira. E junto com as cinzas mais leves fora – se no vento a gordinha.
Desde então, a sombra estava só.
Não que isso chegasse a entristecê-la. Nem era coisa em que parasse para pensar. Cumpria suas tarefas com prazer, com alegria até, mas algo lhe pesava, como se sustentasse a folhagem toda da árvore, ou como se com o tempo tivesse ficado mais espessa, mais escura.
Vale dizer, a bem da sinceridade, que a sombra trabalhava com afinco, mas não era nenhuma escrava. Tinha muitas folgas. Se o sol empalidecesse atrás de uma neblina qualquer, ela já funcionava a meio vapor. Se fosse seqüestrado por nuvens mais espessas, ela nem precisava aparecer. E durante os meses do inverno, quando o vento só trazia chuva e mais vento, podia tirar suas férias sem medo de ser convocada.
Foi justamente na volta de uma dessas férias que um sentimento novo a atravessou. O primeiro sol da primavera tinha acabado de chamá –la para traçar sobre a grama o desenho delicado dos galhos ainda nus. E ela tinha tido o capricho de estufar – se; registrando cada um dos minúsculos brotinhos que logo se abririam em folhas, quando, como se alguém o tivesse gritado, seu âmago sussurrou que a árvore não gostava dela.
Quanta triste surpresa nessa revelação! Mas por que surpresa, se estavam juntas desde sempre, e desde sempre o comportamento da árvore em relação a ela havia sido um só? Talvez porque nunca tivesse antes um dia de primavera exatamente igual àquele, com o mesmo vento frio mordiscando os galhos, a mesma luz morna agasalhando o vento, um dia em que ela, vindo tão só de suas férias e tendo caprichado tanto reprodução de cada brotinho, de cada bifurcação, de cada detalhe da árvore, esperasse, desejasse tão intensamente um agradecimento, um louvor, um carinho.
Ferida pelo silêncio da árvore, a sombra disse para si mesma que depois de tantos anos juntas nem se sequer eram amigas. Ela ali, a derramar-se sobre a grama com um sangramento de seiva, e a outra, alternativa, sem dar-lhe de si mais do que sua forma. Nunca a árvore havia parado de ondejar, para permitir-lhe um pouco de descanso. Crescia, engrossava o tronco, expandia a copa sem pedir licença, exigindo que seu ritmo fosse acompanhado. Comportava-se como se a sombra não existisse. E, se porventura olhava para ela, era seu próprio reflexo que procurava, como se admirasse sua silhueta num espelho.
A partir desta constatação, a sombra não achou mais graça em nada. Parou de desenhar, parou de dançar. Movia-se lenta e preguiçosa, borrava seus contornos, ignorava hóspedes e visitantes. Em vez de uma sombra gentil, parecia ter-se tornado uma poça de tinta.
Tão pesada estava, que por pouco os insetos não se viam presos nela, como em uma teia, e não se vergavam os galhos arrastados por aquilo que antes havia sido um véu.
Mas a tristeza pesava mais nela do que em ninguém. E, sentindo-se esmagar debaixo da sua própria escuridão, decidiu afinal que, a viver a alguém que não a amava, era preferível partir.
Esperou a noite, que é quando as sombras ficam invisíveis es e movimentam livremente.
Lua Nova, tudo escuro. Dormia o sapo na toca. Dormiam os pássaros nos ninhos. Dormia a árvore? A sombra não tinha como saber. Sabia apenas que, mesmo acordada, não prestaria atenção nela.
Silenciosa, como sempre havia sido, desprendeu-se lentamente do tronoc e fastou-se deslizando na escuridão.

Morada nova e generosa
Não podia hesitar. Não dispunha de um único minuto para desperdício. Se o amanhecer a colhesse solta em plena campina, seria o fim. Nada por perto onde pudesse se abrigar, só algumas moitas insuficientes. Mas lembrava-se de que longe, onde ela a via reluzir em dias de sol, havia uma castanheira. Tão frondosa, que certamente sua sombra receberia com prazer o reforço de uma colega em apuros.
Deslizou sobre as pedras, embrenhou-se entre as hastes de um trigal, quase se afogou atravessando um riacho, rasgou-se ali e acolá, mas conseguiu avançar mais rápida que a noite. E, antes que qualquer claridade denunciasse, chegou ao pé da castanheira.
A velha sombra titular ainda cochilava meio embolada entre as raízes grossas, que serpenteavam antes de afundar na terra, e sobressaltou-se sentindo a presença de outra. Havia muito ninguém vinha visitá-la. Embora gostasse da idéia da companhia, manteve-se prudente. Sabia que, como sombra da árvore mais importante da região, sua posição ea muito cobiçada.
Não convinha abrir a guarda para qualquer recém-chegada.
Examinou-a disfarçadamente. Disfarçadamente a outra deixou-se examinar. Não sem uma ponta de nostalgia, a velha sombra sentiu na mais moça um vigor, uma disposição que ela não tinha mais. E um flexível encanto que também havia perdido. E sentiu, com aquela secreta percepção que habita todos os seres, que podia confiar nela. Não havia nada a temer. Melhor seria aproveitara visita. Pois, para atender às necessidades da castanheira, o trabalho ultrapassava suas forças cansadas, e ela quase não dava mais conta do serviço. Com a ajuda dessa jovem sombra, poderia recuperar a agilidade, refazer seus arabescos negligenciados e expandir seu território para abrigar trabalhadores e viajantes. Sim, conclui a velha sombra, a noite lhe havia trazido um belo presente.
E assim foi que nossa sombra se instalou em sua nova morada e amanheceu no primeiro dia cheia de entusiasmo, disposta a demonstrar que saberia retribuir a boa acolhida.
Não demorou para que a presença da jovem sombra ao pé da castanheira atraísse mais visitantes do que qualquer outra na campina. Mães traziam bebês, deitando-os sobre o xale, enquanto iam ceifar e colher, o pastor vinha com seus cordeiros mais novos, um menino aparecei às vezes recostando-se no tronco para tocar flauta de bambu.
Era uma bela vida, cheia de zumbidos e trinados, que a nossa sombra recebia cheia de contentamento. E a companhia da sua velha protetora parecia tornar tudo mais caloroso.

Relato de boca em boca
Às vezes, passando por ali o vento ou algum pássaro mais falador, a sombra pedia notícias de sua antiga morada. Contaram-lhe no outono que árvore, despida de suas folhas, parecia tremer mais do que o esperado e que o tronco, saindo da terra sem enfeite ou apoio de sombra, havia se tornado esquálido como um poste.
Soube assim que nenhuma outra sombra tinha ido ocupar o seu lugar junto àquela ingrata. E, sem saber bem por quê, alegrou-se.
Com a chegada da primavera, uma brisa lhe disse que a floração da árvore não havia sido tão farta, e que a copa parecia mesmo um tanto emagrecida. Voltando, no verão confidenciou-lhe que as raízes sofriam com o calor, pois não havia mais quem as protegesse. E que o sofrimento das raízes se refletia nos frutos, pequenos e de pouco sumo. Já no fim da estação, enteirou-se, por um sopro, de que não tinha havido nenhum fruto tardio, como os que ela costumava nos seus recantos mais frescos para atrasar-lhes o amadurecimento.
O outono veio, alguns grilos retardatários crocitaram que os insetos não procuravam mais aquela árvore esturricada. Dois pastore comentaram que o gado havia deixado de abrigar-se debaixo dos seus galhos, e que sem gado faltava adubo, e que sem adubo não haveria fruto nenhum no ano próximo. Alguém disse também, mas certamente não foram os pastores, que as minhocas, fugindo do calor, tinham mergulhado fundo na terra, deixando de perfurá-la perto da superfície, e que a chuva já não encontrava solo fofo para penetrar.
E, afinal, o inverno chegando ao fim, uma raposa trouxe a notícia mais triste, que ninguém tinha ousado lhe dar: o sapo, o velho sapo da toca das pedras, sem sombra para se proteger e sem força para partir, havia morrido ainda durante o verão.
Naquela noite, ao pé da castanheira, a sombra não dormiu.
Pensou no sapo que não coaxava mais, na cabeleira baça, nas frutas sem sumo, nas raízes que quase não tinham força para mandar seiva até as folhas. E sentiu que, mais que pensar, sofria. E sofrendo e pensando deparou-se com a possibilidade de que, embora em silêncio, ela e a árvore, a sua árvore, fossem mais amigas do que havia acreditado. Pois ali estava ela, penalizada pela sorte da outra. E talvez a outra, no mesmo silêncio da mesma noite, estivesse lamentando a sua ausência.

Sem que fosse preciso falar
De manhã, quando as mães vinham chegando com os filhos, agora enrolados em pesadas mantas, a sombra comunicou à sua velha hospedeira que, apesar da colhida generosa teria que deixá-la. Esperaria a próxima Lua Nova. Até lá a companheira teria que arranjar outra ajudante. Pois, embora gostasse tanto de viver junto à castanheira, tinha um dever de amizade a cumprir.
A Lua Cheia minguou, minguou, fez-se Nova, apagando o céu. E, estando o céu bem apagado, a sombra agradeceu mais uma vez, despediu-se, começou seu deslizar. Deslizou no riacho, deslizou no trigal, agora sem hastes e já semeado, deslizou sobre as pedras.
Rasgou-se um pouco acolá, um pouco ali. Porém, novamente, conseguiu avançar mais rápido que a noite. E, antes que o dia chegasse, viu-se aos pés de sua árvore.
Dormia a árvore? A sombra não tinha como saber. Silenciosa como sempre havia sido, prendeu-se na base do tronco, naquela casaca escura que conhecia tão bem.E cheia de ansiedade, como uma principiante, esperou que o sol jorrasse por cima do horizonte.
Foi o primeiro ouro derramar-se na manhã, e ela derramou-se na campina. Leve, bailarina, bordou em escuro as curvas de cada galho, as manchas das poucas folhas secas que haviam resistido a tantos ventos e que em breve cairiam para dar lugar a folhas novas.
O orvalho sentiu-se protegido em cada fio de grama. Carunchos pálidos começaram a roer velhos resíduos de casca. As raízes retomaram seu crescimento terra adentro.
Nada parecia ter mudado. A árvore ondulou seus galhos. E, se olhou para sombra, o fez apenas como se olhasse sua própria imagem, como se visse sua silhueta refletida num espelho. Nem por isso pesou mais o manto da sombra. Nem por isso sentiu-se desamada. Assim são as coisas, pensou com a compreensão que tinha ido buscar tão longe. Era da natureza da árvore voltar-se mais para o céu do que para a terra. Era da sua natureza de sombra estar colada no chão e ocupar-se de pequenos seres. Era da natureza de ambas viverem assim lado a lado sem trocar palavra. E talvez fosse da natureza do amor existir mesmo sem palavra alguma.
Tão doce era o pensamento, que por instantes a sombra esqueceu seu trabalho. Mas um sopro de vento enredou-se na árvore, descompôs os desenhos que ela já havia traçado, e ao rearrumar-se percebeu que a ponta de um galho inchava em leve protuberância. Era a primeira anunciando sua chegada. Em breve teria muito o que fazer, pensou a sombra, aquecida de contentamento. E, com se fosse um beijo, depositou uma tatuagem no dorso do jovem sapo que vinha vindo.

Autor: Marina Colasanti

 

 

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