Uma festança na floresta

Estamos no mês de junho, as fogueiras de São João se acendem, balões sobem, já há friozinho e aconchego. Dá para comer batata-doce à meia-noite com café tinindo de quente.

Mas me disseram que a festa não é só nossa. Pois não é que ia haver uma festa da bicharada na selva? E calculei que isso acontecesse no mês de nossos próprios folguedos. Pelo menos é o que garantem os índios da tribo Tembé.

Foi assim: os animais das matas até que estavam ocupados e calmos em relação a seus deveres, pois o dever do animal é existir. Mas eis senão quando surgiu no ar um boato que logo se espalhou alvissareiro num diz-que-diz assanhado. Vinha esse boato trazido pelo canto do sabiá. Como o sabiá, a quanto se sabe, canta pelo mero prazer de cantar, ficaram os bichos em dúvida sobre se era ou não verdade.

E – de repente – começou a chover convite para a tal festança. Quem convidava não dizia quem era, mas todos desconfiaram que a idéia vinha da rainha das selvasbrasileiras, a onça, manda-chuva que era. Todos os bichos foram convidados, garantindo-se que na ocasião seria abolida a ferocidade. Até a mãe-coruja, que de tão séria e sábia até óculos usava, foi convidada com os seus filhotes. Quanto às filhas do macaco, doidas para namorar e enfim casar, enfeitaram-se tanto e com tantas bugigangas que pareciam umas – é isso mesmo, pareciam umas verdadeiras macacas. E quem pensa que a cobra faltou por ser tão nojenta está enganado: apareceu fazendo salamaleques com o corpo escorregadio para chamar atenção.

A noite estava toda iluminada por milhares de vaga-lumes, pela lua silenciosa e pelas estrelas úmidas. Quanto à orquestra, fiquem certos de que era da melhor qualidade: uma turma de tucanos encarregou-se de tocar em valsa os mais belos grunhidos da mata. A bicharada estava possessa de alegria. O papagaio foi muito aplaudido quando berrou uma canção alegre, e as macacas casadoiras, penduradas pelos rabos nas árvores, estavam certas de que eram grandes bailarinas. Bem, a coisa estava no máximo de animação, mas a onça estava inquieta, doida para atacar. E como não fosse permitida nessa noite a carnificina, ela começou a ser feroz com a língua viperina.

Então cantou:

– Dona Anita é gorda e roliça que nem uma porca e tem cor de rato.

A Anta danou-se e retirou-se. A onça, vendo que tinha tido sucesso, cantou uma ofensa horrível contra o jabuti, dizendo que este estava coberto de mosca varejeira. Tanto que o jabuti ofendido foi embora. Depois a onça falou:

– Vejam que decote indecente o das filhas do macaco.

As macacas ficaram fulas da vida e só não saíram de lá porque a esperança de arranjar noivo é a última que acaba. Mas acontece que havia entre os animais o deus dos veados, Arapuá-Tupana, que resolveu acabar com a empáfia da onça e para vencê-la pôs-se a cantar. Os bichos, sabendo que quando o ouvissem morreriam, taparam os ouvidos. Arapuá-Tupana afinal foi embora e a bicharada não morreu. É. Mas os animais haviam perdido o dom da fala, ninguém se compreendia mais. E isso até o dia de hoje. Porque grunhir ou cantar não diz nada. Tudo por causa da onça linguaruda.

Clarice Lispector

Extraído de: Como nasceram as estrelas

Doze lendas brasileiras

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