A princesa vampira

Um rei rico e poderoso tinha uma filha única, muito bonita mas um tanto estranha. Ela falava muito pouco e vagava pelo palácio, como se estivesse sonhando. Quanto mais crescia, mais ela dormia. Tanto é que uma bela manhã não conseguiu mais acordar. Não adiantava sacudi-la, prometer-lhe maravilhas. Ela só dormia. Porém, não estava morta. Via-se claramente: sua pele permanecia rosada e ela respirava docemente.

O rei chamou para a cabeceira de sua cama os médicos mais ilustres do mundo. Discutiam, consultavam-se uns aos outros, preparavam todo tipo de remédios, mas em vão. A bela adormecida não acordava.

Um dia, uma velha cigana que o acaso havia conduzido para perto do palácio, parou na cerca de entrada, pedindo um pouco de comida e alguma roupa velha. A mulher do porteiro tinha bom coração e deu o que podia. A cigana lhe agradeceu e, quando ia embora, falou:

– Ouvi dizer que aqui existe uma princesa que passa o tempo todo dormindo e que ninguém consegue acordar. Se fosse minha filha, eu saberia o que fazer.

– O que é o que você faria? – perguntou a mulher do porteiro.

– Iria ver Chtara-Khengero – respondeu a cigana – e lhe pediria conselho.

– Mas quem é Chtara-Khengero ? Nunca ouvi falar de um homem com esse nome.

– Não é um homem, mas um animal – disse a cigana. Vive no meio da floresta e não é fácil encontrá-lo. Ele tem quatro olhos, dois na frente e dois atrás: por isso é que nós, ciganos, o chamamos Chtara-Khengero, que quer dizer “quadrióculo” na nossa língua. Ele não dorme nunca e sabe tudo. Mas ele é um comilão. Se o rei me der dois carneiros, dois galos, duas dúzias de ovos e duas medidas de manteiga, eu posso procurar o Quadrióculo e lhe perguntar o que é que a princesa tem.

A mulher do porteiro pediu para a cigana aguardar um pouco e foi falar com o rei.

O rei disse:

– Pois dê a ela tudo o que pedir, e diga que ela terá duas vezes mais, se encontrar a fera e trouxer um bom conselho.

A cigana pegou os dois carneiros, os dois galos, as duas dúzias de ovos e as duas medidas de manteiga; levou a metade para casa dela e foi procurar o Quadrióculo com o resto. Conseguiu encontrá-lo, pois os ciganos conhecem a floresta melhor que o comum dos mortais. Colocou os presentes a seus pés e lhe perguntou o que fazer com a princesa adormecida.

O Quadrióculo olhou o carneiro, o galo, a dúzia de ovos e a medida de manteiga e disse:

– Concordo em lhe dar um conselho, por que não?

Mas, conte-me primeiro o que você fez com a outra metade das provisões.

– Eu sei que você adivinha tudo – disse a cigana, meio encabulada – e não pretendia enganá-lo. Mas tenho filhos em casa e estão com tanta fome quanto você. Trarei tudo o que o rei me deu, se você me disser de que mal está sofrendo a princesa.

– Está bom – disse o Quadrióculo – mas lembre-se de que, se você não cumprir a sua promessa, nunca mais lhe darei nenhum conselho. A princesa é uma vampira. Ela precisa de carne e de sangue humanos. E se não lhe derem, ela vai morrer. E seria até bom que isso aconteces­se, para o bem dela e de todo mundo. Mas, se o rei quiser que ela viva, que a coloque num caixão e que coloque esse caixão na capela do palácio, mandando para lá toda noite um soldado da sua guarda pessoal. O soldado estará morto antes do amanhecer e a princesa viverá, enquanto o rei continuar sacrificando seus soldados.

A cigana agradeceu ao Quadrióculo. Foi até o palácio e contou tudo ao rei. O rei ficou muitíssimo abalado, mas considerou que seria melhor que perecessem os soldados do que deixar a sua filha morrer. Mandou então fazer um caixão magnífico. Instalo-o na capela, com a princesa estendida dentro. Depois o rei convocou os soldados de sua guarda – havia exatamente cem – e perguntou quem queria ser voluntário para guardar a princesa. Como recompensa, oferecia um jantar real e, no dia seguinte, permissão para ir visitar a família. Claro que houve cem voluntários. Mas o rei escolheu um que menos lhe agradava, porque era vesgo. Os outros ficaram com inveja. Mas a inveja durou apenas até a manhã seguinte. Quando os soldados entraram na capela para fazer o revezamento da guarda, encontraram seu companheiro morto. Sem nenhuma gota de sangue, porém. Isso lhes pareceu muito estranho. Nessa noite ninguém mais quis voluntariamente ser guarda.

E o rei teve de novo que escolher. Dessa vez ele pegou um pobre coitado. O rei não simpatizava com ele porque tinha lábio leporino. E o coitado não podia fazer nada… tinha que obedecer. Quando, na manhã seguinte, o segundo guarda foi encontrado morto, o rei não podia mais obrigar ninguém a montar guarda na terceira noite. Deu ordens, portanto, que fosse tirada a sorte: quem fosse designado pela sorte teria que ir, sob pena de ser decapitado.

A sorte caiu sobre um soldado que estava a serviço do rei há sete anos e que em breve voltaria para seu lar. Era um cigano, pai de quatro filhos. Tinha sido recrutado para ser guarda por seu porte altivo e sua alta estatura, sem que ninguém se preocupasse com o fato de ser pai de família. Os sargentos ligavam bem pouco para isso.

O cigano tinha, pois, cumprido seus sete anos e estava contando os dias que faltavam para servir ao rei quando, falta de sorte!, foi designado para ir guardar a princesa. De nada adiantou ele chorar e implorar que outro fosse no seu lugar, já que ele quase tinha terminado seu tempo de serviço. Claro que ninguém quis substituí-lo. De noite, teve seu jantar real, mas perdeu o apetite, pensando que: talvez no dia seguinte estaria se encontrando com seus predecessores no paraíso. Como seu serviço só devia começar quando caísse a noite e como ainda era dia claro, foi dar uma volta no pátio do castelo e meditar sobre seu infortúnio. De repente, viu-se frente a frente com a velha cigana, a mesma que contara ao rei que sua filha era vampira. Ela havia voltado ao castelo para receber o resto de sua recompensa, que não tinha conseguido carregar da primeira vez.

– Boa tarde, vovó – disse o soldado com um ar abatido.

– Boa tarde – respondeu a cigana, que logo notou que o soldado era de sua raça. – Por que esse ar de infelicidade? Você perdeu alguém?

– Não perdi ninguém, mas eu seguramente estarei perdido antes do amanhecer – suspirou o soldado.

– Mas você não parece ter um pé já colocado na cova – riu a velha. Um belo rapaz, cheio de saúde como você, deve viver cem anos.

O cigano, então, lhe explicou que deveria passar a noite na capela, e lhe contou o que acontecera com os que tinham feito a guarda da princesa antes dele. A velha logo percebeu do que se tratava e teve pena do belo soldado.

– Quando é que você deve fazer a guarda? – perguntou.

– Ao cair da noite.

– Você ainda tem tempo. Vá – disse a cigana ­entre na capela e não tenha medo, não vai acontecer nada antes da meia-noite. Espere-me. Voltarei e direi o que você tem que fazer para evitar a morte.

O soldado criou um pouco de coragem, agradeceu a velha e foi para a capela. A cigana voltou rapidamente para casa. Pegou a outra parte da recompensa que tinha recebido, um carneiro, um galo, uma dúzia de ovos e uma medida de manteiga, e foi correndo até o Quadrióculo.

– Eis o que prometi – falou. Mas você ainda tem que me dizer como evitar a morte do soldado que guarda a princesa vampira esta noite. É um bom amigo meu e é muito corajoso.

– É fácil – respondeu o Quadrióculo. Que se esconda atrás do altar antes da meia-noite. A princesa vai acordar quando soar a meia-noite, mas, se não vir ninguém, vai se deitar de novo e dormir. Seu amigo poderá então, sair de seu esconderijo e vai ver nascer o dia, são e salvo.

A cigana agradeceu e correu até a capela. Quando chegou, não era ainda meia-noite. Bateu na janela e o soldado abriu.

– Então? – perguntou impaciente.

A cigana transmitiu-lhe o conselho do Quadrióculo e voltou para casa. Era quase meia-noite. O cigano agachou-se atrás do altar e esperou. À meia-noite, a tampa do caixão levantou-se, a princesa sentou-se e olhou em volta, mas não viu ninguém.

– Onde foi parar meu jantar de hoje? – gritou com raiva. Meu pai se esqueceu de mim!

Desapareceu dentro do caixão e fechou com raiva a tampa.

O cigano esperou mais um tempinho atrás do altar. Quando viu que tudo estava calmo, saiu, deitou-se no tapete que havia no chão em frente ao altar e adormeceu tranquilamente  Quando os outros vieram no dia seguinte abrir a capela, encontraram-no bem vivo. Foram avisar o rei, que ficou surpreso. Chamou o soldado e lhe disse:

– Conte o que se passou de noite. Se você disser a verdade, receberá uma bolsa cheia de ouro.

O cigano não era dos mais espertos e foi logo contando tudo. Só não contou que a velha o ajudara, preferindo gabar-se de ter encontrado sozinho a solução. O rei lhe deu o dinheiro prometido, mas ordenou que fosse fazer a guarda uma segunda noite. O cigano ficou com muito medo.

– Faltam poucos dias para eu cumprir meu tempo de serviço – disse. Pensei que iria ser dispensado deles, já que guardei tão bem a princesa. Gostaria tanto de voltar para minha casa.

– Não – disse o rei. Você irá de novo esta noite.

Dizendo isso, o rei foi até a capela, levantou a tampa do caixão, escreveu algumas palavras num pedaço de papel e colocou a mensagem no seio da adormecida. Eis o que escreveu: “Não esqueci você. Olhe bem atrás do altar e você irá encontrar.”

O cigano estava muito infeliz com a ideia de vigiar a princesa mais uma noite. Mas, como não sabia o que o rei tinha feito, estava um pouco mais seguro do que da primeira vez. Mas o que mais o aborrecia era não poder voltar para casa. Teve a tarde livre para poder dormir, mas preferiu dar uma volta por perto do castelo, e de novo encontrou-se com a velha cigana.

– Vejo que tudo correu bem – disse, depois de cumprimentá-lo. Quando é que você volta para casa?

– Talvez amanhã – respondeu o soldado. O rei ordenou que eu monte guarda mais uma noite.

– Não gosto disso. Espero que você não tenha contado o que aconteceu na capela na última noite.

– Ele me perguntou, então eu lhe contei tudo – confessou o soldado.

– Como você é burro! Por que você contou?

– Ele me deu dinheiro.

– Bom, então me dê a metade e vou tentar salvá-lo mais uma vez.

O cigano então deu-lhe a metade da recompensa e ela lhe disse:

– Vá à capela e espere por mim.

Mais uma vez pegou um carneiro, um galo, uma dúzia de ovos e uma medida de manteiga e voltou a procurar o Quadrióculo.

– Diga-me como salvar meu amigo mais uma vez­ pediu. Ele é meio tonto. Contou tudo para o rei e tem que montar guarda na capela nesta noite de novo. Estou achando que é uma armadilha.

– Você não se engana – replicou o Quadrióculo. O rei quer a morte dele. Mas, se você falar para ele se esconder na sacristia antes da meia-noite, não vai lhe acontecer nada.

A cigana agradeceu o Quadrióculo e foi correndo até a capela, e disse ao soldado onde ele devia se esconder para evitar a morte.

– Mas quando você sair de lá – disse ainda – não vá contar ao rei o que se passou.

O cigano prometeu seguir seus conselhos e, sobretudo manter-se calado. Antes da meia-noite, foi se esconder na sacristia e ficou olhando por uma fresta. Justo na hora da última batida da meia-noite, a tampa do caixão saltou. A princesa sentou-se e olhou em volta. Como não viu ninguém, começou a gemer, achando que o pai tinha se esquecido dela, novamente. Nesse instante descobriu a mensagem no seu seio. Mal acabou de ler, pulou fora do caixão e foi direto atrás do altar. Mesmo estando bem escondido, o cigano tremia de medo. Mas, como ela não encontrou nada atrás do altar, deitou-se de novo no caixão e bateu a tampa com raiva. O soldado só teve que esperar o amanhecer. Quando anunciaram que o guarda estava são e salvo, o rei mandou chamá-lo e começou a interrogá-lo. Mas, desta vez, o soldado permaneceu em silêncio. O rei podia oferecer as maravilhas que quisesse para que ele contasse o que tinha acontecido de noite, mas o soldado permanecia mudo.

– Eu lhe darei um saco cheio de ouro, se você me contar tudo – disse por fim o rei.

“Um saco de ouro”, pensou o cigano, “poderia construir uma linda casa e meus filhos poderiam ir para a escola e tornarem-se pessoas importantes”. Pensou um instante, depois disse a si mesmo que, já que a velha esperta tinha conseguido aconselhá-lo por duas vezes, certamente iria descobrir de novo um truque para enganar a vampira. E ele ficaria rico o bastante para recompensá-la. Portanto, contou ao rei tudo o que tinha acontecido durante a noite.    ‘

O rei mandou trazer um saco de dinheiro, deu-o ao soldado, mas disse-lhe que ele deveria ficar de guarda mais uma noite.

– Será a última vez – prometeu. E se você sobreviver ainda essa vez, ficará livre para voltar para casa e viver feliz, até o fim de sua vida.

Assim que o soldado saiu, o rei foi até a capela e colocou uma mensagem no caixão para sua filha, dizendo que ele não tinha se esquecido dela; que o soldado certamente estava escondido em algum lugar na capela. “Procure bem”, acrescentou, “e não descanse até encontrá-lo”.

Ele esperava, assim, conseguir duas coisas de uma só vez: ficar com o seu saco de ouro e dar comida para sua filha. E ele foi embora, então, tranqüilo. O cigano é que não estava nem um pouco sossegado com a idéia de passar uma terceira noite de guarda. Ele escondeu o seu tesouro num lugar seguro; mas a sua felicidade estava um pouco conturbada pelo temor da noite. Se a cigana desta vez não pudesse aconselhá-lo, sua fortuna não serviria para nada.

Depois do almoço, foi até a cidade à sua procura. Primeiro, encheu-lhe os bolsos de ouro para despertar sua boa vontade. Mas, quando ele confessou que de novo tinha contado ao rei tudo o que tinha acontecido de noite, ela ficou furiosa.

– Já que você é tão estúpido, vai ter que se virar sozinho.

Mas, quando ela viu em cima da mesa um monte de moedas brilhando, deixou-se dobrar e prometeu aconselhá-lo pela última vez.

– Eu irei até a capela ao anoitecer e direi onde você deve se esconder. Assim que o soldado foi embora, a cigana juntou as comidas para o Quadrióculo e correu para a floresta.

– Você de novo, você! -resmungou o Quadrióculo ao vê-Ia. O que é que você ainda quer de mim?

A cigana primeiro mostrou-lhe os presentes e depois fez o seu pedido. O Quadrióculo esfregou a pata atrás da orelha.

– Desta vez é muito difícil mesmo. Hoje a princesa vai estar faminta e vai revistar toda a capela para achar o seu amigo. Se não encontrar carne fresca e sangue humano esta noite, ela morre. Só há um meio de salvar seu soldado. Antes da meia-noite, que ele se coloque na cabeceira do caixão. Logo que a vampira se levantar, que ele se coloque no seu lugar dentro do caixão e faça de conta que está morto. Enquanto não abrir os olhos e não fizer nenhum movimento, a vampira não poderá fazer-lhe nenhum mal. Mas, ai dele se se mexer. Vai ser despedaçado.

A cigana agradeceu ao Quadrióculo e foi correndo até à capela. O soldado já estava lá. Ela lhe transmitiu o recado, repetindo palavra por palavra o que ele tinha a fazer. O cigano não sabia como agradecer e, comovido, prometeu que iria obedecer.

Antes da meia-noite, colocou-se na cabeceira do caixão. Exatamente à meia-noite, a tampa se ergueu, encobrindo o soldado. A princesa leu a mensagem, pulou fora do caixão e se pôs a revistar toda a capela. Ela procurava por todos os lugares, foi atrás do altar, correu até a sacristia, subiu no púlpito, percorreu a galeria. Enquanto ela buscava por todos os cantos, o soldado deitou-se silenciosamente no caixão, cruzou as mãos sobre o peito e fechou os olhos… Por fim a princesa voltou para junto do seu caixão, dando gritos e se lamentando. Quando viu que aquele a quem estava procurando estava deitado lá, como um cadáver, seu choro redobrou. Derramava torrentes de lágrimas e implorava ao soldado que abrisse os olhos e se levantasse. Mas o cigano permanecia imóvel.

– Olhe para mim, soldado – dizia a princesa com a voz mais suave. Olhe como sou bonita. Se você se levantar, você vai salvar a minha vida e serei sua esposa.

Bem que o soldado teve vontade de saber se a princesa era tão bonita quanto ela dizia, mas ele ficou com os olhos fechados sem fazer o menor movimento. De repente, ouviu-se o relógio da torre. Soava uma hora da manhã… A princesa deu um grito e caiu no chão.

O soldado esperou um momento, mas como tudo estava calmo, ele saiu do caixão. Olhou para a princesa e viu que ela não se mexia. Levantou-a e deitou-a de novo dentro do caixão e fechou a tampa. Sabia que agora ela não podia lhe fazer nenhum mal. Depois, deitou-se no tapete frente ao altar e dormiu profundamente. No dia seguinte, de manhã, quando os soldados abriram a capela e encontraram mais uma vez o cigano com vida, foram logo contar a novidade ao rei. Mas, desta vez, o guarda não esperou que o rei mandasse chamá-lo. Fugiu a mais não poder. Foi correndo até seu esconderijo, pegou o saco com as moedas de ouro, colocou-o nos ombros e se mandou. No caminho, parou na casa da velha cigana e deu-lhe uma farta recompensa, pelos seus bons conselhos. Depois despediu-se, comprou um cavalo para ir mais rápido e partiu, todo feliz, para reencontrar sua mulher e seus filhos, que não via há sete longos anos.

 

Conto cigano

Por: Jette Bonaventur

Extraído de: O que conta o conto?

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