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O SONHO, O SURTO, O MITO E O RITO

Jornada cuja lanterna

é o enigma da semelhança

de histórias distantes

no tempo e no espaço.

Pesquisa de inquietos

em sonhos, surtos e rituais,

no inconsciente,

em mitos, filmes, estrelas,

 jogos e livros.

          Era uma vez um personagem que levava uma vida tranquila, até que um dia surge um problema, esse pobre precisa se tornar adulto e se transformar, com uma ajuda extraordinária, em salvador de si mesmo e, depois, da sociedade. 

          Esse pode ser o esquema de um enredo de um filme, de um jogo, de um livro ou até de um sonho.  É uma estrutura textual presente em histórias de qualquer povo, de qualquer sociedade, de qualquer tempo, seja ela letrada ou ágrafa.

          Nesse texto exploraremos juntos esse tipo narrativa, que muitos chamam de contos maravilhosos ou, simplesmente contos de fadas. Alguns autores até separam esses dois tipos de contos, tendo como conto maravilhoso aquele cuja raiz é oriental, com problemática mais material e o de fada, existencial e simbólica. Não consigo ver essa diferença nos contos que vamos tratar aqui. Há sim, muitos contos, principalmente em Mil e Uma Noites, que tratam especificamente de questões materiais resolvidas com auxílio mágico, mas até que ponto não são também um símbolo é muito difícil parametrizar. 

          A principal característica dos contos de fadas é que eles são universais: um conto de fada chinês pode ser muito parecido em sua essência com um da américa central ou um africano;  são fora do tempo e do espaço, podem ter ocorrido em qualquer época, em qualquer lugar, com qualquer rei ou qualquer rainha, príncipe ou princesa, guerreiro, caçador, bela dama ou lavadeira.

          São assim justamente porque tratam de algo que está longe da consciência e perto da essência do ser humano: a psiquê e seu material inconsciente.   A jornada do protagonista é o mergulho do eu consciente a um mundo desconhecido, inacessível,  que está lá, nos labirintos de nós mesmos. Têm como tema a busca por essa essência simbolizada em um tesouro inacessível, seja ele um objeto, um elixir ou uma pessoa amada. Para consegui-lo é necessário uma grande batalha, morte e renascimento.

          Se há um monstro, um lobo ou uma bruxa é porque nos sombrios de nossa psiqué há enigmas, traumas, conflitos, oposições que precisam vir à luz.

Se acabam em casamento e final feliz é porque o masculino e o feminino precisam estar em harmonia para uma pessoa ser emocionalmente equilibrada. A alma precisa encontrar a parte que lhe falta:  ela não tem sexo, mas foi dividida ao nascer. Isso de ser homem ou mulher é usar uma roupa, uma máscara, o ego. Todo homem e toda mulher é composto de princípios femininos e masculinos e, no nascimento parte da essência se desgarra e vai para o inconsciente, sendo a aventura da vida fazer com que opostos se aproximem e vivam felizes.

Espelho da alma,

 aspectos da busca

 das pessoas que me habitam

nas camadas e camadas que me compõe

pela pessoa que sou.

Mapa do inconsciente,

corrido pela consciência,

lanterna dos labirintos,

umbrais da travessia:

conto de fada

Cada conto de fada é uma experiência indescritível de autoconhecimento, transmitido e eternizado pela palavra do faz de conta, pelo símbolo, que se materializa e se transforma em história que corre pelo mundo, se mescla a outros materiais inconscientes e conscientes e se transforma em outras histórias.

Um conto de fadas possui corpo, alma e espírito. Seu corpo é o material que o compõe, as ferramentas da civilização que transformou as imagens em história: a sua forma de viver, a sua concepção de mundo, seus desejos, sua organização social. A sua alma é mais rebelde, tenta colocar na história uma compensação para o mundo real. Ela tem uma intuição do que o mundo precisa, do que lhe falta e do que faz sentido, como quando o mais humilde desbanca o tirano ou quando a jovem busca o sapato que lhe cabe pra vida. Fala de forma simbólica,  como o sonho fala àquele que dele se lembra. Já seu espírito o liga ao sagrado, ao divino, ao centro. Os contos de fadas são jornadas iniciáticas que mostram o caminho.

Com a afirmação acima vou explorar porque a origem dos contos de fadas é um enigma, um impasse não resolvido entre diferentes pessoas que se debruçaram sobre eles no decorrer de séculos. Eles possuem um viés histórico, material, cultural e ao mesmo tempo um viés místico. Um dia imagens ganharam  a forma de história, num determinado lugar, numa determinada época e nela a paisagem e o material cultural ficou expresso, nas características, nos hábitos e nos costumes das personagens –  são esses traços culturais que nos possibilitam afirmar que os contos de fadas tradicionais, que chegaram a nossos ouvidos pela via europeia possuem três grandes cepas: a oriental (da Índia para o Oriente Médio e dali para a Península Ibérica), a latina (greco-romana) e céltica- bretã (de onde vieram as fadas) ; que se fundiram e mutaram num ambiente judaico cristão e muitos são uma tentativa de unir a tradição pagã à consciência cristã. Então há também caminhos históricos e políticos percorrido pelos contos que viajaram junto com a humanidade. 

Esse viés histórico seria muito bem aceito se civilizações distantes no tempo e no espaço não tivessem histórias tão semelhantes. As histórias que chegaram até nós vindas pela rota ocidental clássica são muito parecidas com histórias nativas do continente americano, por exemplo.

 É inegável a ideia de que os contos de fadas são uma resposta para os dilemas da vida e têm como tema a essência do ser humano, de sua busca pelo sentido da existência. Tomemos por exemplo “ A Bela e a Fera”: a que conhecemos é remanescente direta de um conto francês, que foi se transformando no decorrer dos últimos 400 anos hoje é uma história que conversa com o nosso tempo. Porém o tema da mulher que redime seu noivo animal é muito antiga e se faz presente em diferentes civilizações, num recorte de tempo de mais de 25.000 anos.

O conto de fada pode ser também um guia para a vida, ensina a lidar com as bruxas que estão no meio do caminho real ou dentro de nós mesmos. Enfim, cada conto de fadas é uma jornada de busca de significado, da parte que falta, de algo mais sublime, de algo que renova a vida de fora e, principalmente, interna, psíquica.

Conto de fada,

Conto maravilhoso,

conto arquetípico

símbolo

da substância,

da essência

do ser humano,

universal,

atemporal.

Travessia de nós

por nós.

Vamos fazer um exercício: tente transformar os sentimentos que passaram por você durante o dia em personagens: pense como seria a preguiça que te acometeu pela manhã e o que ela sentiu ao toque estridente do despertador; a preocupação ao perceber que o trânsito estava fechado e você iria se atrasar para aquele compromisso tão importante; a fome da hora do almoço… Agora imagine que todas essas personagens vão construir o enredo de uma história. Elas darão materialidade ao que está dentro de nós, mais à superfície da pele, como coloquei no exemplo acima, ou ainda: quem é a madrasta da Branca de Neve, se não a própria inveja da Branca de Neve que a destrói e a faz agir de forma a magoar o outro e a ela própria? Quem é o príncipe  (e não é um homem, é o sentido da vida) que liberta essa moça de seu caixão de vidro que a aprisiona na rotina dos afazeres do dia-a-dia?

Não são só os sentimentos conscientes são personificados no conto. Nele estão a angústia dos traumas encapsulados durante a vida e de todas as vidas que vieram antes e nós, codificadas em nosso DNA.

“Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamar isso de destino”. Carl Gustav Jung

A essa altura você já percebeu onde eu quero chegar. Cada história é um mapa daquilo que todos temos, comum a toda humanidade, mas não conhecemos, ou conhecemos muito pouco: a vida psíquica. É um guia pra que eu reconheça a minha própria inveja e possa colocá-la a meus serviços: se eu quero, vou em uma busca consciente de meu desejo; se a rotina me enfadonha, busco por algo que a transcenda. Se a angústia me domina, preciso dar-lhe corpo, matéria-símbolo para que possa lidar com ela.

Diferentes contos são espelhos de diferentes aspectos da vida psíquica, que precisam ser integrados, amadurecidos. Alguns tratam de como reconhecer e lidar com a sombra, outros falam das diferentes pessoas que vivem dentro de uma pessoa, outros, ainda do equilíbrio entre o masculino e feminino e de como é possível acessar o tesouro mais raro de todos, o self, o eu mesmo.

Nas histórias o ego-protagonista, por via de regra, aprende e se reinventa assim como nós, num processo de autoconhecimento nos observamos e aprendemos a interagir com turbulência do amadurecimento de nossa psique. Nessa perspectiva, autoconhecimento não é pensar em você mesmo como uma personagem com determinadas características, mas o processo de reconhecimento de seus múltiplos personagens e de como eles se transformam num processo evolutivo; é o seu protagonista, com a lanterna e a lança na mão, iluminando e trazendo pro lado dele tudo aquilo que está obscuro na floresta sombria, se armando com a mais poderosa de todas as armas, a coragem, combatendo o monstro, se curando, crescendo.

Como essas histórias nos fazem viver e conhecer de forma simbólica, do lado de fora, as experiências e os impulsos que vivemos ou viveremos do lado de dentro, perturbam, dão prazer e alívio, atraem, são eternas e universais.

O rei que tudo tinha

um filho de coragem pedia a sua rainha.

Por magia a criança chegou.

Quando o rei, velho, sem direção

precisou de um forte varão,

o tolo príncipe precisou crescer.

A jornada necessária

trouxe o guerreiro,

o herói,

o mestre.

o rei e o reino. 

Os contos de fadas começam com uma grande falta: uma criança que fica órfã, um rei sem filhos,  uma princesa muito doente,… Algo está seco ou petrificado e precisa de uma água nova. Essa falta exige que o protagonista, o eu consciente empreenda uma grande aventura, encontre aliados, os conheça, os reconheça, lhe dê nomes, cumpra provas e tarefas, entre num mundo diferente, duele com seus monstros, que infectam tudo o que é bom e sadio, e retorne dessa jornada com o elixir criativo que salvará o reino. 

Antes de continuar desejo alertar você leitor, que o intuito desse texto não é terapêutico, nem explorar os meandros da arteterapia ou da contoterapia. É  apenas expor como os contos de fadas são um reflexo de nossa psique. São a jornada que o eu consciente faz no inconsciente buscando a maturação, a cura.

sonho ou surto,

mito ou rito:

roteiro único,

mapa que surge

dom do momento que urge.

Você consegue se lembrar de um sonho que mexeu com você? Nele você entrava num ambiente estranho, num porão, num sótão, num navio, numa nave ou no mar? Havia algo ou alguém que te perseguia e te fazia ir em frente? Havia uma voz que te dizia algo? Houve algum tipo de enfrentamento? Você precisou voltar?

Se sim, você é a prova viva que os contos de fadas refletem o processo de cura, no sentido de maturação, de cura do queijo e do doce, da psique. Esse tipo de sonho tem a estrutura do conto de fadas. É um clamor do inconsciente em sua língua nativa: as imagens e surgem justamente quando há um chamado, quando algo está balançando dentro da gente.

Muito provavelmente nossos antepassados muito longínquos também tinham esse tipo de sonho, que foi representado dramaticamente e depois transformado em ritual. Foi narrado, tornou-se história, depois  mito e religião e voltou a ser história contada pelo povo, ao redor das fogueiras, nas cozinhas,  nos livros, no cinema. Passou de boca em boca, de pena em pena, de tela em tela, porque compensam a desordem interna que balança todos e a cada ser humano.

          Aqui eu poderia explorar a utilização dos sonhos em seções de análise, mas creio que acima já deixo claro porque há milhares de anos a interpretação dos sonhos é um oráculo terapêutico do que está por vir, é uma realidade interna que deseja emergir. Já explorei bastante a relação entre vida psíquica e contos de fadas e apenas citei que os rituais são remanescentes de dramatizações dessas mesmas estruturas e possuem as mesmas funções compensatórias.

          Os rituais de passagem servem, justamente para acelerar o processo de amadurecimento, para por ordem no caos quando damos um salto na vida. Hoje sou estudante, dependente do rumo que meu mestre me dá; me formo, ganho chapéu e bastão, símbolos de poder e condução, e assumo a batuta que vai conduzir minha profissão.  

          É muito provável que, historicamente, as narrativas se transformaram em rituais, em mitos em religião. Quando perderam seu valor dogmático, ganharam a boca do povo, foram se depurando e passando de geração a geração porque não perderam sua função compensatória, não deixaram de conversar com o inconsciente comum a todos os seres humanos. 

Nesta tentativa de explicar a semelhança dos contos de diferentes épocas, de diferentes tempos, relacionando-os a sonhos e rituais, não posso deixar de citar Wladimir Propp, e seu livro “Raízes históricas do conto maravilhoso” (2001), publicado em 1928. Propp (1895-1970) foi um acadêmico do estruturalismo Russo e construiu sua teoria sobre as bases do materialismo histórico. Para ele, os contos são resquícios de rituais que tentam subjugar a natureza. Suas imagens fantásticas são o reflexo das forças da natureza, que em sua evolução passaram do sagrado ao grotesco. O conto, nesta perspectiva, é o que sobrou dos rituais de iniciação, da jornada do jovem ao mundo dos mortos que o transforma em rei, guerreiro, xamã, adulto pronto para o casamento.

Por incrível que pareça ainda temos remanescentes desses rituais de passagem em nossa sociedade. Pense em todo o simbolismo de uma festa de 15 anos: a menina ganha anel, sapato e vestido; passa a fazer parte de um círculo de adultos e sai dos braços do pai para os braços de um rapaz. O menino serve ao exército, onde cumpre tarefas que assegurem a sua virilidade e sua capacidade de agir no mundo com força e coragem.   Agora lembre-se de um filme de herói: Homem Aranha, Wolverine ou Jhon Wick. Em todos esses os protagonistas sofrem flagelações e, em alguns casos, são esquartejados, passam pela prova do fogo, são lançados na água ou em uma caverna sombria para saírem de lá renovados e, depois, renovarem o mundo.

Voltemos à Wladimir Propp: segundo ele a jornada do conto é o reflexo  do ritual da estada de um ser vivo no reino da morte, de onde traz a magia e a sabedoria para interagir no mundo dos vivos, ter domínio sobre a natureza, os animais, a morte e a doença.

Os contos exigem deslocamento, uma viagem de tarefas, e de presentes que ajudam na caminhada ao mundo dos mortos: um sapato, uma pele de animal,  um alimento ou um bastão. Se nos rituais eram os sacerdotes que colocavam o jovem no caminho, nos contos são seus substitutos: a mãe, a bruxa, a madrasta, o selvagem, um animal ou o tirano.

A entrada num reino desconhecido, na floresta, no oceano, num castelo é o primeiro estágio da travessia, que é seguido pela subida ao céu ou a entrada numa caverna, no ventre de uma baleia ou num cômodo proibido. Em ambas paradas há o guardião do limiar, que vigia e presenteia o navegante.   Nos rituais havia a casa grande e a isbá (casa pequena) onde o jovem permanecia e era submetido a provas e tarefas para a purificação.

Veja essa representação:

Poderia ser a representação da estrutura de uma tribo e o mapa de muitos contos de fadas. É inegável que a jornada da personagem protagonista passa pelas mesmas etapas da do jovem em processo iniciático. Ambos saem da casa do pai, passam por uma fronteira e são recebidos por companheiros que o auxiliarão até as portal do covil, ou do reino da morte. Precisarão entrar no núcleo do reino escuro para sair de lá renascidos. Morrerão para ressuscitar. Nos rituais, os jovens passam por provas físicas e quase morrem realmente; são purificados com água e fogo, pintados. Nos contos o herói sofre, atravessa rios, ganha banho, roupas novas ou limpas e palavras mágicas que lhe abrirão caminho; limpa a casa, cuida dos animais, ou colhe frutas de um jardim, sem reclamar, para depois ser iniciado nos segredos da felicidade.

Tanto nos ritos ou nos contos o jovem precisa fazer a conexão com seu espírito guardião, dando-lhe a liberdade para vir ao mundo este lhe protegerá e lhe dará presentes, habilidades para influenciar e agir no mundo.

Ao longo de 400 páginas, Propp descreve como é esse processo em que o homem, sujeito histórico, cria rituais mágicos para tentar dominar a realidade material, produzindo uma realidade social, que o forma, o transforma e o faz produzir narrativas.  Apesar de muito baseado nas ideias de Friedrich Engels e Karl Marx, as ideias de Propp esclarecem muito a jornada do herói dos contos de maravilhosos e, com certeza, foram fonte de inspiração para Joseph Campbell em sua mitologia comparada e dão sustentação à psicanálise e à psicologia analítica. E, por incrível que pareça, o roteiro proposto por Propp é identificado também em estudos que veem o mundo material como um reflexo imperfeito do mundo astral.

A Cabala, a astrologia, o tarot, são formas de interpretar esse vasto mundo simbólico, isso sem falar de outros sistemas que surgiram em diferentes civilizações na história  da humanidade. Espero, assim,  que tenha conseguido responder, segundo a minha verdade, que não é a única, a proposição inicial.

Jornada cuja lanterna

é o enigma da semelhança

de histórias distantes

no tempo e no espaço.

Pesquisa de inquietos

em sonhos, surtos e rituais,

no inconsciente,

em mitos, filmes, estrelas,

 jogos e livros.

Filosofia, ciência, crença ou fé,

espelho do que transcende.

CAMPBELL, Joseph . O HEROI DE MIL FACES – 1ªED.(2007).

Editora: Pensamento

PROPP, Wladimr. A MORFOLOGIA DO CONTO MARAVILHOSO. Editora: CopyMa

rket.com, 2001 (1ª ED: 1928)

                           . Raízes históricas do conto maravilhoso. Editora: Martins Fontes (2003). (1ª Ed: 1946)

VOGLER, CHRISTOPHER. JORNADA DO ESCRITOR: Estruturas míticas para escritores. NOVA FRONTEIRA, Rio de Janeiro, 2006 | 2a. Edição revista e ampliada

JUNG, Carl Gustav (ORG). O HOMEM E SEUS SIMBOLOS. Editora HarperCollins Brasil – 3ªED.(2016)

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