O Contador de Histórias

Contador de histórias é guardião de pedra joia
lapidada pelo tempo
guardada na memória
que às vezes vira vento
e foge
a libertar das entranhas da terra
outros tesouros.

            A atividade humana sem fins de subsistência ou produção material mais antiga do mundo ainda é causa de estranhamento quando assumida como profissão. Que contador de história ainda não ouviu “como assim, contador de histórias?”

            Pois, contador de histórias sim. Pessoa que num estado passional optou por ter como ofício a narração de histórias. Profissional que onde quer que vá leva tudo o que precisa sem esforço, uma vez que pode fazer uma performance artística com apenas sua voz, seu corpo e um público. Artista que, aos poucos, vai mostrando seu valor e sua identidade, afirmando que sua linguagem artística não é teatro, não é literatura. É, no Brasil, contação de histórias ou, em boa parte do mundo, narração oral.

            Que a contação de história (oral) existe desde os primórdios da humanidade, que é anterior até mesmo ao uso de palavras não é preciso discorrer, assim como não é preciso colocar que perdeu seu espaço no Século XX para os livros, que se democratizaram, e para os meios de comunicação eletrônicos. Agora, que se tornou um ofício, que saiu das casas e foi galgando espaço em palcos e meios acadêmicos é algo que vale a pena saber, principalmente se você aspira adentrar nesse universo.

            Existe um conto que diz que quando uma ideia fica velha ela é guardada numa caverna escura e fica lá, até que um dia, o guardião desse lugar a libere ao vento e ao mundo em forma de poeira.  Depois de viajarem muito, esses grãozinhos podem fertilizar flores e se transformarem em sementes, ou podem continuar pó mesmo. Pois foi na década de 1970 que, em várias partes do mundo, a contação de histórias brotou como uma manifestação artística urbana e, na década de 1990, criou raízes, se ramificou, se multiplicou.

            No Brasil, não foi diferente. Na década de 70 a contação ganhou status acadêmico, espaço nas mídias e nos palcos. É claro que antes disso muita gente já tinha pensado no assunto, principalmente nas escolas e nas bibliotecas. O próprio neologismo brasileiro “contação de histórias” tem seu primeiro registro com Guimarães Rosa, em 1956. E claro, não podemos deixar de falar em Malba Tahan, um professor carioca que em 1957 escreveu “A arte de ler e contar histórias”.  Já são quase 50 anos que essa linguagem artística é difundida em nosso país por nomes como: Fernando Lebeis, Cecília Conde, Rolando Boldrin, Gilka Girardello, Regina Machado, Eliane Iunes, Francisco Gregório Filho, Betty Coelho, Bia Bedran, Celso Sisto… e tantos outros.

Contar histórias é… contar histórias…

é fazer como sua tetravó, analfabeta, fazia,

depois do jantar, sentada ao lado do fogão de lenha…

é contar histórias, só isso.

Não é ler, não é recitar, não é explicar.

É buscar na memória uma história e contar.

Só isso, tudo isso: é encantar.

            Agora, tem tantos jeitos de contar histórias como tem histórias diferentes nesse mundo. O contador pode contar histórias de vida,  ancestrais, que inventou ou improvisou, de livros. Pode contar em pé, sentado, andando. Pode contar com gestos, com vozes, com caretas, bonecos, objetos,…, ou não. Poder ter o texto na ponta da língua ou o enredo no coração.

            Por isso antes de continuar preciso esclarecer que os próximos parágrafos contêm uma verdade relativa. É a minha verdade, aquela que se aproximou de mim e me conquistou. A verdade de muitos contadores que carregam nos ombros a tradição da palavra sábia. Se conseguir convencer você, pois bem: vamos trilhar os mesmos caminhos; se não, busque um outro, mas depois me  mostre qual você escolheu, ou melhor, me conte uma história contando, porque contador, pra ser contador, precisa, sim, ouvir muitos jeitos de contar histórias.

Pra fazer um contador de histórias

pegue memórias coronárias,

vidas passadas,

verdades escondidas,

sabedorias perdidas.

Tempere com cheiros, sabores e cores

Afagos, velhas dores, novos amores.

Depois dê tudo

pra alguém virado pra dentro.

Espere por anos.

De repente nasce um.

Ser um ouvidor de histórias é o primeiro passo para quem quer ser contador. No ato de ouvir, o contador cria seu repertório de imagens, compreende como a história age em sua mente, em seu corpo, em sua alma e como ele próprio se transforma na história. Também nesse momento tem a oportunidade de aprender o que fazer, ou não fazer, analisando o trabalho de seu colega. Um segundo é ler a vida e as pessoas. É essa leitura que dá magia à narração. E, um terceiro passo, é exigência para o contador urbano, contemporâneo: ler muito, para que, além de conhecer muitas narrativas, seu discurso seja o mais próximo possível da forma padrão, para que suas construções linguísticas sejam esteticamente bem elaboradas e seu pensamento, fluido. Cursos e técnicas para a contação também ajudam, mas não ensinam este ofício.

Ainda criança se colocava a frente do espelho da mãe e se perguntava:– Espelho, espelho meu, esse aí sou eu?“. O espelho não respondia, e o menino não via o que via. Intuía. Como encontrava o que queria ser nos outros meninos, refletia uma imagem que não era dele: por um tempo era um outro menino, igualzinho àquele que ele tinha visto na rua, livre soltando pipa, cheio, de si mesmo por fora, mas vazio nos ossos; depois era outro, que tinha conhecido no campo, à beira da fogueira na lua de outono – passava a falar entoado, mas como sua língua teimava em falar reto, resolveu ser o filho da vizinha, que fazia bonito nos saraus da cidade: virou um poeta que não sabia rimar. E assim foi. Passou por muitos espelhos. E a todos perguntava:– Espelho, espelho meu, esse aí sou eu?“. Nenhum lhe deu resposta. Até que, um dia, cansado de perguntar, o menino, agora homem, se sentou sobre seus calcanhares e se lembrou de tudo o que tinha sido. Foi quando percebeu que esse tudo era agora nada, e esse nada, que era tudo, era ele.

O contador de história é isso: é todos os contadores que vieram antes dele e, ao mesmo tempo, é ele, só ele.

            Quem, algum dia foi seduzido pelas histórias, precisa se perguntar: por que quero contar histórias? Que tipo de histórias e como quero contá-las? Tendo isso em mente deve começar sua jornada sabendo que: é no erro que vai aprender; assim como haverá desafios que lhe convidarão a parar, existirá uma ajuda mágica que o fará transpor barreiras; não sairá dessa experiência ileso – carregará sequelas dela por toda eternidade

O aspirante a narrador também precisa ter ciência que a palavra humildade é a que rege a sua arte. Que a estrela do espetáculo jamais será ele próprio, mas a própria história. Ela estará sob os holofotes. Ela ficará na memória do espectador. Enquanto contar, seu tempo, seu corpo, sua voz e sua alma estarão a serviço da palavra da história.

            Esse pacto é o dom do contador (e ponto final).

   Contação é palavra falada

que bate no peito

na garganta

nas mãos

na alma

do contador

que sai de si

para dar lugar

à entidade: História.

            Uma seção de contação de histórias é um momento único. É um momento de entrega do narrador que mergulha no próprio inconsciente, retira de lá as imagens que lhe são mais caras e depois as compartilha com seus ouvintes, convidando-os a uma visita às suas próprias memórias e imagens. Contar histórias é um ato de afeto, de amor pelo outro, pelo mundo.

            Durante a contação, há muito mais que uma história. Temos a memória ancestral da própria história e as memórias individuais do contador e de cada um dos ouvintes, trabalhando juntas num momento coletivo, de troca, mas, ao mesmo tempo profundo, individual e de transcendência.

            E após a contação, o que acontece? Por que o gostinho de quero mais? Quero mais porque dá prazer afetivo, dá prazer espiritual, dá prazer carnal. Porque o “viveram felizes para sempre” traz esperança para um mundo caótico, local em que milhares de perguntas ainda não foram respondidas. Porque o “fatum” (o destino da história e do ouvinte) tranquiliza a existência. Porque, enfim, quem ouve e conta histórias se transforma.

No baú dos segredos

carrega histórias,

carrega sonhos,

carrega prego e martelo,

carrega de Adão e Pandora

à criança que o ouve.

Depois da compreensão que o dom não é dado ao contador, mas é ele, contador, que se entrega à história, passaremos a falar sobre o ato de narrar em si (um dos objetos de estudo do contador de histórias – os outros seriam: o objeto narrado e as teorias que estudam como as histórias agem na constituição do ser humano). Tendo em vista que essa é uma linguagem artística autônoma, não está a serviço da literatura, nem é uma ramificação do teatro, exploraremos suas especificidades.

A primeira delas e que talvez crie estranheza no leitor, é que a contação não tem texto, tem a história. Cada seção de contação é um ato único e original, em que o contador cria o texto no momento em que fala, sendo absolutamente fiel à história que conta não só com a boca, mas com todo o seu corpo e com alguma técnica apreendida.

No parágrafo anterior, com poucas palavras, abordamos outras três especificidades da arte de contar histórias: repertório, memorização e técnicas. É sobre elas que nos debruçaremos a partir de agora, já deixando claro que, para que a contação se torne um momento de fruição estética, não são suficientes. Ainda falta o encantamento, que nasce da paixão do contador e no envolvimento de quem o ouve.

A escolha do repertório não é simples. A história precisa ser boa – não é preciso comentar que essa qualificação é relativa e subjetiva­­ – o ouvinte precisar ter desejo de ouvi-la; o contador precisa ter desejo de contá-la. Tanto um como outro precisam se identificar com a história.

A partir do momento em que essa escolha é feita, é preciso um acolhimento carinhoso do enredo que entra devagar no coração do contador, que passa a contá-lo de cor(ação), que livre das amarras do estatuto escrito, cria artisticamente o seu texto com palavras, olhares, gestos e sons.

Contar histórias é um ato intuitivo que nasce no inconsciente do contador, mas mesmo assim esse artista precisa refletir sobre algumas técnicas experimentadas por outros contadores se deseja adentrar nesse nicho de mercado, uma vez que estamos tratando aqui do contador contemporâneo, urbano e profissional.

A primeira verdade universal para o contador é que ele precisa acreditar na história e se colocar na posição de testemunha viva do que aconteceu. O contador vê a história, não está dentro dela.

Além de olhar para a história, o contador também olha para o público, nos olhos de cada uma das pessoas que está a sua frente e cria na mente delas a imagem que está realmente vendo, as coloca em seu mundo encantado. Consegue isso quando transforma sua fala em uma melodia, suas palavras em objetos e seu corpo em uma ilustração.

Preciso reforçar que a história não é propriedade do contador. Ela é patrimônio da memória ancestral de um povo ou de um autor. Portanto, o contador não pode mudar sua estrutura fundamental. O contador a transforma em imagens que depois compartilha com os ouvintes. Se eu disse “imagens”, e não fatos, o contador deve fazer descrições precisas, não enfadonhas. Deve se aproximar devagar do local onde a história ocorre e, aos poucos, ir se chegando a cada um dos personagens e objetos, descrevendo-os com adjetivos, metáforas, comparações e personificações, para depois entrar na ação propriamente dita. As palavras que usa devem carregar a força que expressam – “um saco pesado” é “um saco pesaaaado”. Suas frases são inteiras, com pontuação oral (vou usar pontuação oral, uma vez que a pontuação escrita nem sempre transcreve a fala) correta, mesmo que com pausas durante a sua emissão. E justamente usa essas pausas para saborear as imagens que cria e para que o ouvinte faça o mesmo. Seus gestos são precisos e contidos, complemento do que é dito ou esclarecimento do que não é.

E por falar em saborear as imagens, não posso deixar de colocar aqui que o contador usa e abusa de todas as sensações. Todo artista trabalha com o cérebro sensorial do seu público, e sabendo disso, o narrador pode moldar sua performance resgatando o cheiro do bolo de chocolate assando no forno da casa da avó, o banho de rio frio do passeio de verão, o sabor azedo de um morando colhido na hora, o som onomatopaico de uma porta rangendo que fará a pele do ouvinte se arrepiar.

Se a primeira verdade é que o contador vê a história, a segunda é que ele respira a história, que ele é o coração da história, que pulsa em sua fala. É por isso que o ritmo da narração está atrelado ao clima da história. Se o enredo é de terror, o ritmo expressará suspense, com muitas pausas. Se é de desespero, será desembestado, sem pontos ou vírgulas. O ritmo, resultado da intenção do contador, portanto, desperta sentimentos no ouvinte.

E a última e não menos importante verdade é que as histórias não têm uma moral e um ensinamento em si. O contador não interpreta e não emaranha seus pensamentos ou sua moral na tessitura da trama. Ela, por si só entra no ouvinte e dialoga com suas memórias, traz pro seu consciente algo que estava esquecido, há muito tempo guardado. A sua própria história o faz chorar, não o choro do contador. Reforçando: não é a sabedoria da história que transforma, mas a sua conversa com a sabedoria de quem as ouve.

No começo carregava um baú,

queria enchê-lo de tudo,

pedia ajuda.

Não entendia quando riam

e essa rizada dizia:

contador leva caixa de anel

entra nela a joia que quer entrar

            A escolha da história já diz muito sobre a proposta do contador. O foco deste trabalho está no profissional que conta histórias ancestrais de tradição oral (mitos, lendas, fábulas, contos maravilhosos, facécias, causos, …) ou faz livre adaptação de histórias autorais.

            Como já foi colocado anteriormente, a história precisa ser precisa. Tanto o contador quanto o ouvinte devem se sensibilizar, se identificar com ela. Por exemplo, se conto para crianças com menos de quatro anos, os personagens precisam fazer coisas do cotidiano e das vivências afetivas da criança: é o macaquinho que não quer dormir e atrapalha o sono o pai, é o garoto que não quer comer a sopa ou tomar banho; se conto para mulheres, enredos bons são  aqueles em que os personagens buscam, de alguma forma, encontrar seu lugar no mundo e reafirmar a sua identidade; se conto para adolescentes, o herói da história jornada precisa passar por tarefas e provas antes de conseguir o final feliz para sempre.

            Escolhido o texto, o próximo passo é libertar-se dele. Já vi muita gente travar porque não consegue fazer isso. O contador precisa decorar (pôr no coração) a história. Precisa fechar os olhos e projetá-la em seu pensamento como se ele fosse uma grande sala de cinema. Depois disso feito, deve exibir esse filme, contar. Provavelmente na primeira vez essa contação ficará parecida com uma explicação. Aos poucos ganhará esteticidade. Passando, aos poucos, de um resumo dos fatos para uma performance com descrições, detalhes, adjetivos, sons, cheiros, cores e sabores, sentimentos e verdades universais, que também se revelam aos poucos ao contador e, conforme se revelam, vão mudando a própria forma de narrar, a intenção de cada ato. É como se o contador fosse um garoto que aprende a surfar: no começo seus movimentos são mecânicos, mas devagarinho seu corpo duro passa a deslizar e a fazer manobras como se fosse parte do mar, ganhando beleza na forma e no conteúdo.

            O interessante é que quanto mais histórias aprende, mais fácil fica a memorização. O cérebro aprende a aprender, se cria ou se recria um caminho estrutural, no qual a nova história se deita.

            Ao contrário do que parece, memorizar a história não é difícil. Como já coloquei, aprendemos a aprender. Aí vem a dica mais preciosa que costumo dar a meus alunos: não se preocupe com a quantidade de histórias, se preocupe com a qualidade de sua contação. Escolha uma história, reflita sobre o processo de construção de sua performance. Conte muitas vezes a mesma história.

            E pensar na estrutura do enredo também ajuda a memorizar a história. Em muitos contos de fadas, por exemplo, depois de uma situação inicial há um problema que só é resolvido na terceira tentativa do herói, depois de cumprir um número determinado de tarefas e de desafios.

            Preciso falar, ainda, sobre algo que todo o contador preza muito: a improvisação. Se durante uma seção há um celular tocando ou alguém entra na sala abruptamente o contador pode colocar esse fato na narração, fica muito interessante. Agora, o contador profissional, contemporâneo, não improvisa sua performance e tem total conhecimento da história que narra, isso é pré-requisito para o encantamento.

            Aí adentramos em outro fator que caracteriza a narração oral: o contador está à frente do tempo da história, narra algo que já aconteceu  e conhece toda a trama e todos os desejos dos personagens antes de começar a contá-la. É onisciente e também onipresente – pode ver a cena de cima ou de baixo, às vezes pode até emprestar sua pele a um personagem ou a um objeto, mas nunca se deixa fazer parte da história. É onipotente no que diz respeito ao ato do narrar: pode embelezar sua performance com outras linguagens artísticas: músicas, cantigas, cenários, figurinos, bonecos,…, pode inclusive criar para si um personagem contador: bruxa, caipira, pescador.

            Ouvidos se abrem com um diapasão – poderiam ter sido chamados com uma cantiga, uma outra história, um chamamento ou um era uma vez – e a história, enraizada no pensamento, cria ramas que saem do coração e abraçam todo o corpo do contador,  vira vento pra depois  começar a entrar por aqueles ouvidos.

Escolhe ele a palavra certa pra cada coisa.

Não uma qualquer, feita de letras,

mas a mais bonita,

feita de ar, de fogo, de terra ou de água,

de alma trançada com matéria

Toda a história começa com uma descrição, pode ser de um lugar, de uma personagem, de um objeto, feita numa fala tranquila e até certo ponto, imparcial. Aos poucos essa descrição se torna ação e a fala se molda à intenção do enredo. É como se a imagem fosse tomando forma e a palavra ganhasse o peso de seu significado. O traje pesado do rei não pode ser descrito da mesma forma que descrevo o vestido esvoaçante da princesa. O galopar do cavalo é bem diferente do planar da gaivota.

O som é energia que afeta todo nosso corpo e da boca do contador sai muita coisa além de palavras. Sai todo o tipo de som que consiga fazer e que caracterize a imagem sonora do conto: onomatopeias, estalos, chiados, gargalhadas, risadas de bruxa,… E é claro que podem ser feitos sons com instrumentos, pés, mãos… A própria voz é uma linguagem e pode ter um significado por si só, não apenas no que é dito, mas no como é dito. Brincar com seu tom, seu timbre, seu volume e todas as suas possibilidades é uma excelente ferramenta de embelezamento do momento.

Agora, preciso fazer um parêntesis e dizer que talvez o que seja mais difícil de ensinar a um aspirante a contador é o ritmo e fluidez da fala. As frases precisam ser ditas inteiras, mesmo que haja pausas durante a sua emissão. Não existe vírgula depois do sujeito, muito menos um ponto o separa do predicado. Depois do verbo, há que se pensar se há vírgula, isso depende da construção linguística da oração.  A pausa é uma suspensão da fala, o ouvinte precisa ter a sensação que a frase continuará. O ponto é marcado quando o tom da última sílaba abaixa e a vírgula, quando o tom sobe. Esse problema interfere na beleza e compreensão da história e para saná-lo há que se ler muito em voz alta, ler poesia principalmente, lembrando que esse gênero textual não é lido verso a verso, é algo complexo, também. A leitura em voz alta ajuda o contador a articular as sílabas corretamente. O uso de crases e regência correta embeleza muito o discurso. Analisar a fala dos repórteres dos telejornais ajuda a compreender o que estou falando – é muito estranho quando a fala desse profissional não é fluída ou clara. 

É interessante que a narração oral não aceita muitas das marcas de oralidade. O contador não pode usar marcadores tipo… daí,…, né; nem construções como “A Maria, ela foi…”, “…ne uma…”. Já o uso de pronomes deve ser refletido, pois é bem diferente do uso da escrita, que os exige; na oralidade deve ficar muito claro a quem o narrador se refere, nem que para isso precise usar nomes repetidamente. Usar uma expressão do momento aproxima o ouvinte da trama. Sempre pesquiso com adolescentes novas frases prontas. Hoje uso “partiu comer…”, “deu um nem te ligo”,…  Podemos concluir, então, que a narração oral também é muito diferente da narração escrita, cabe ao performer fazer as adaptações necessárias, entre elas: falar preferencialmente num tempo passado (que em determinados momentos vira presente), em terceira pessoa e com acontecimentos em ordem cronológica, com um único fio condutor.

O som da história é música e música também exige silêncios. Na contação, existem dois tipos de pausa: a pausa da história que marca um suspense, um momento de pensamento do personagem e a pausa para a construção de imagens. O contador precisa dar esse tempo ao ouvinte. Ele tem a medida exata, marcada pela sua própria construção da imagem.

            Olha nos olhos de cada um dos ouvintes, mas também a história. Descreve o magnífico castelo de longe e depois se aproxima, pequeno, olhando pra cima, imensas torres. Dá voz ao poderoso rei, ombros alargam, peito estufa e olha pra baixo, ao súdito. Se o personagem caminha, também dá alguns passos. Alterna olhares, direção do corpo e postura quando alterna vozes e arquétipos.

Falamos até agora o que o ouvinte vê com a imaginação. Só que quem está na audiência, também vê com os olhos. Assim, precisamos conversar sobre a utilização do espaço e do corpo por parte do narrador.

Primeira coisa a se ter clara: a ação acontece na imaginação e não no palco; mesmo que o personagem perca todos os 15 filhos tragicamente, o narrador não dramatiza seu sofrimento, o descreve com empatia. O deslocamento no espaço deve ser mínimo e planejado, só se caminha se o enredo pedir. Se não consegue permanecer com uma postura equilibrada, sem movimentos involuntários pra lá e pra cá, deve-se optar por narrar sentado. O cenário, se existir, é para embelezar e ambientar. Não é o quadro da história. O corpo do contador sim, com seus olhares, expressões faciais e gestos, pode construir um cenário.

É claro que a utilização do corpo faz parte de um todo de significado e vai compor, com os outros elementos da performance o momento de fruição estética. Portanto, o movimento não é um ornamento da palavra, pois contém também um significado em si que, muitas vezes, a desdiz.

Existem, na contação, dois tipos de gestos: o corriqueiro, que a pessoa faz normalmente ao falar e o intencional, especificamente planejado para o momento. O uso de gestos deve também ser contido. O narrador não pode inventar uma nova língua de sinais. O gesto intencional não pode desenhar a fala, ele é um complemento, lhe dá peso, direção e força. Conduz olhares, dando a impressão que o objeto narrado existe. Se o contador está em frente uma casa, vê suas vidraças que reluzem ao sol (jamais lhe faz o contorno); se abre uma gaveta, para de falar e procura dentro dela a tesoura, se cala e olha para o gesto que cria; se ouve bater à porta, sua mão vai ao ouvido, não bate no ar, pois ele OUVIU não BATEU. Se precisar, também faz uma pausa, tão repleta de significados, em seus gestos.

O gesto, destacando o movimento da cabeça, pode ser insinuado ou claro, alongado, curto ou exagerado. É claro que o gesto é intuitivo, assim como as essenciais expressões faciais. Mas pensar um pouco sobre eles ajuda enriquecer muito a performance. Eles podem ser convencionais, como um sinal de positivo; figurativos, quando desenham algo no ar, um contorno ou parte dele, por exemplo; dramáticos, quando representam uma ação; sensoriais quando ajudam a criar sabores, cheiros e percepções táteis; de personificação, quando o contador encarna a personagem e gestos de sentimento, que exprimem mágoa, alegria, entusiasmo. Todos esses são, de certa forma, gestos realistas, mas ainda há uma outra categoria que eleva a narração a obra de arte: o gesto metáfora, simbólico, que conversa com o inconsciente. Por exemplo, quando aparece uma assombração na história e fazemos um sinal da cruz: esse é um gesto que remete a um pedido de bençãos, de ajuda divina.

Porém, há que se ter cuidado para não cair no ridículo. Cada contador deve conhecer as limitações de seu corpo, se se abaixar, deve ter certeza que conseguirá se levantar prontamente, se saltitar, deve ter certeza que tudo continuará no lugar. Carlos Dietmann, um contador de Curitiba tem uma performance interessante e singular – pode passar a seção inteira sobre apenas uma perna – se eu tentar fazer o mesmo, vou “pagar um grande mico” e arriscar meus objetivos com a história. Ainda há mais um cuidado: o gestos não podem se acumular, gestos amontoados tendem a se anular.

E o que falar sobre o gesto facial, tão essencial ao narrador? É no arregalar dos olhos, no torcer de lábios, no franzir de testa que a história se antecipa, ganha vida, vira verdade. A expressão facial é responsável por transmitir emoções, desejos, dar personalidade às personagens e expressividade a toda a trama. Se o narrador apenas diz que a personagem ficou com gosto de fel na boca é uma coisa à toa, despercebida pelo ouvinte. Agora se esta fala vem acompanhada de uma cara de quem já experimentou o fel, memórias nojentas nascerão naquele que ouve.

            A história fora é arte ancestral.

            A história dentro vira arte

            quando vira corpo,

vira som,

vira palavra.

            Aqui entramos no talento literário do contador. Que belo é quando ouvimos frases que beiram a poesia. Não estou falando necessariamente de rimas, métricas ou aliterações. Me refiro à: beleza das construções linguísticas, permeadas de figuras de linguagem, com adjetivos e advérbios colocados criativamente num lugar inusitado, mas absolutamente correto; brincadeira com palavras escolhidas a dedo, trocadilhos, provérbios, frases prontas e jargões atuais. Para fazer isso o contador precisa ler literatura de qualidade e refletir sobre esses recursos. Assim como aprendeu a falar porque estava inserido no mundo da linguagem, vai adquirir uma fala mais poética ao ler texto arte.

Ainda precisa fazer uma escolha em relação às falas. Pode usar: discurso direto, usando-se verbos de elocução e rótulos de fala, ou não, indicando quem vai falar ou mudando a voz ou a entonação para cada um dos personagens; essa indicação também pode ser feita com mudança de lugar, direção de olhares, postura corporal; discurso indireto, explicando o que a personagem disse.

Arrumou a sala com perfume de rosas,

com luz do eclipse,

com som de estrelas que batiam ao vento…

e esperou como a criança que espera a praia chegar,

a enamorante fantasia.

            E como o contador capta a alma? Com toda essa arte que falamos até aqui e tendo em vista que contação de história é arte popular, fala a língua do aqui e do agora. Não é folclore, morto no tempo. O herói pode ter 2.500 anos, mas é o herói contemporâneo que poderia estar em qualquer filme da Marvel; o capeta é o espertalhão, que poderia ser manchete de qualquer telejornal popular.

                 

O segredo é fazer de conta que não sei,

que sou ingênuo,

que aprendi só com minha avó

e com os moços que,

 sentados na praça

do quando eu era pequeno,

contavam histórias.

            É claro que nossos antepassados não pensavam em tudo isso quando contavam histórias. Porém, se você está lendo este texto, espera que a sua prática ganhe beleza. 

            Busco aqui uma reflexão sobre os encantadores com histórias para que você reflita sobre o seu trabalho e a partir daí, intuitivamente, o aprimore. Toda essa “técnica”, precisa ser aprendida e depois “esquecida”. Fazer arte é isso. Artista amarrado é artista morto.

O bom contador é aquele que tem liberdade de se transformar de acordo com o tom, o coração, da história. Se conta uma facécia, sua postura, seu tom de voz, jeito de olhar é um. Se conta um mito, é outro.  O bom contador também se transforma no contato com a energia de seu público; é como se ela fosse o leito do rio que direciona e delimita o fluxo do contador.

            Ao escrever este texto tentei não dividi-lo cartesianamente, pois entendo que não dá pra separar a narração oral em gavetinhas. Sua sapiência é ciência e vida vivida, tudo junto e misturado, se é pra usar jargões.

Até agora falamos muito do narrador, fazendo relações com as histórias e o ouvinte. Pedagogicamente, poderia apontar cada um dos eixos de estudo –  o ato de narrar, o objeto narrado e as teorias que estudam como as histórias agem na formação humana (entendida aqui em todos os seus significados) – e os elementos da contação – o narrador, a história e o ouvinte. Porém, todos esses são aspectos indissociáveis da contação.

A partir deste ponto vou mudar um pouco o foco, colocando-o no ouvinte, visto aqui como coparticipe   da ação. É incrível como a performance muda conforme energia a plateia. Se a audiência se entrega, forma-se uma egrégora, o contador também entra no fluxo. Amo contar pra adolescentes por causa disso. É difícil agarrá-los, mas quando a atenção deles se prende história, não solta mais. Sou contadora por causa deles, estudo o que acontece no momento da contação para entender o que acontece com esses meninos quando vão largando seus corpos e entrando no enredo, quando olham pro espaço que está à minha frente absortos, conversando com as próprias lembranças, e quando (sic) choram.

Ao tirar um primeiro véu se descobre que as histórias embelezam uma realidade crua, transmitem valores, propiciam uma reflexão ética, que levam à compreensão do comportamento humano. Porém, ao descortiná-las percebe-se que guardam segredos: levam ao autoconhecimento, a um mergulho no inconsciente, a um encontro consigo mesmo, à transformação. Muitos estudos já se debruçaram sobre esses poderes das narrativas. A psicanálise explica como as histórias podem dar um repertório emocional ao indivíduo, ensinar a controlar medos e desejos. A psicologia analítica compreende que as histórias levam à individuação, ao encontro do eu eterno. A teosofia e a antroposofia creem que a jornada do herói é própria jornada da alma e ambas se retroalimentam.

De uma forma ou outra, todas essas teorias concordam que as histórias agem no inconsciente e dele, seus símbolos e suas mensagens, depende a saúde mental do indivíduo.

Posologia: uma história, três vezes ao dia.

Escolhida a dedo de artista e de cientista.

Na dose certa, medida no quilate da intuição.

            Se as histórias curam, o remédio precisa ser específico: quais devem ser contadas? Se a resposta fosse simples diria: a história arquetípica, que opera com símbolos, a mesma língua do inconsciente e dos sonhos. Mas como disse, esse conhecimento é complexo, exige o estudo de uma vida.

            Aqui vão ficar apenas algumas dicas.

            A primeira delas é que a literatura autoral trabalha, quase sempre, com signos: com construções linguísticas que tem a beleza nas palavras, na construção do texto. Por isso se prestam muito mais à leitura, à decodificação, ou àquela contação de texto decorado na palavra escrita.

            As histórias de tradição oral, milenares e que operam com símbolos, seriam as mais indicadas, sempre observando a quem serão contadas. Um conto de fadas compilado antes de 1800, por exemplo, jamais poderia ser contado a uma criança.

Muitos autores tentaram fazer a classificação dos contos orais, e muitas foram as estratégias criadas para dividi-los em categorias. A grosso modo poderíamos dividi-los em Mitos, Lendas, Fábulas, Contos de Fadas ou Maravilhosos e Causos (facécias, anedotas,…). Para o contador essa divisão é significativa para que compreenda a intenção e a função de cada um desses gêneros, percebendo assim o tom que a narração deve ser feita.

Na antiguidade o homem olhou pro céu, se perguntou “de onde vim,  como vim e pra onde vou”, pensou na ideia do divino e criou os mitos, histórias que explicam sua relação com o sagrado e são verdades absolutas para os povos que as criaram.

Quando abaixou os olhos, buscou significados e, numa busca para explicar o que via, criou as lendas, narrativas fantásticas, cuja veracidade era duvidosa, que tratavam de sua relação com o mundo material.

Agora, para entender seu relacionamento com outro homem, criou uma alegoria chamada fábula – uma forma de falar sobre moral e dizer o que pensava sobre o comportamento humano sem ser penalizado. Não é à toa que o compilador de fábulas mais famoso foi Esopo, um escravo grego (talvez a própria história da vida de Esopo seja uma alegoria que explica a existência desse gênero textual).

Creio ter ficado claro nestes três últimos parágrafos o que coloquei sobre o tom da narração. Mesmo não acreditando nos mitos gregos, devo narrá-los como verdades. A dúvida precisa permear a lenda e a fábula pode ser encarada como uma brincadeira de faz-de-conta.

Já os contos de fadas, apesar de imaginários, precisam falar para a alma, pois retratam a relação do homem consigo mesmo. É um mergulho dentro de si. Explicam os sentimentos humanos, da luta do bem contra o mal travada por cada um de nós. São iniciáticos, uma vez que falam de amadurecimento, de transformação, de jornadas de aprendizagem. São um tratado de ética, de virtudes conseguidas a partir da reflexão e da busca de um ideal e de uma identidade.

E o que todos esses gêneros têm em comum? Para responder a essa pergunta procuro uma palavra que ainda não foi inventada. É uma palavra que beira o significado de esperança, de êxtase mental e físico, de fruição estética. De caos vivido compensado pela beleza sentida.  De desejo que desperta a carne para a ação, aqui, agora, neste plano.

É claro que existem histórias que colocam os pés num gênero, mas abraçam outros e narrativas que não se enquadram em nenhum. Isso não pode se tornar preocupação para o contador que, afinal, intuitivamente, encontra as cores de seu trabalho.

E a chave, qual é?

É a história som, que abre caminho pra história letra,

Pra letra arte, pra arte imagem.

            Agora, depois de ter exposto tudo isso, preciso retomar uma ideia que permeou todo esse trabalho: o contador tem como matéria prima a memória, a intuição e a imaginação.    As imagens alimentam a memória e ativam o inconsciente, lugar de onde vem a criatividade e se escondem, as memórias. A  imaginação, movida pela intuição, dá suporte ao pensamento e à razão. É pela imaginação que, esperançosamente, planejamos a ação sobre a realidade e construímos memórias.

            E é justamente pela imaginação que a contação pesca o leitor. Sempre fiquei intrigada com uma questão: adultos que um dia foram adolescentes leitores vorazes, de minha geração, tiveram pouquíssimo acesso a livros infantis, repleto de imagens quando pequenos, mas adolescentes de hoje se deliciavam com livros ilustrados até poucos meses atrás e agora odeiam ler. Preguiça? Pode ser. Falta de desejo? Com certeza –  a leitura literária precisa dar prazer e a contação ensina isso. O jovem busca repetir o que sentiu ouvindo, lendo. Olha só: geralmente os meninos odeiam romances, histórias de amor, até que percebem que as narrativas podem ser, sim, uma fonte para fantasias e deleite. Porém ainda há outra questão: no ato da leitura de um texto sem ilustrações, o cérebro ativa estruturas para criá-las e o que dá esse arsenal é a  história som e não a acompanhada por desenhos.  Há muito tempo já havia percebido que a contação de histórias propiciava uma boa melhora na leitura oral dos alunos. Achava que aprendiam a entonação e por isso liam melhor. Hoje vejo que a contação não ensina (só) entonação. Ela dá suporte ao imaginário. O aluno que ouve histórias as lê vendo as imagens. Por isso lê com entonação. Lê com o coração.

Era, é, e sempre será, era uma vez.

            Você leitor, já percebeu que pra minha verdade, contação é alquimia. É mergulhar nas profundezas de uma câmara secreta para transmutar metal bruto em ouro, é ter vida eterna. Cada história que narro é um ato de aprendizagem, que me ensina, principalmente, que ainda há muito a ser aprendido. 

Termino este texto com uma advertência ao aspirante contador:

CONTAR HISTÓRIAS DEIXA SEQUELAS, ninguém sai desta experiência como entrou.  A jornada se cumpre, o herói se transforma e passa a carregar em seus ombros todos aqueles que o antecederam, tendo a certeza que sobreviverá nas histórias que contou.

Vou continuar

nas histórias que deixo

como os antepassados

que carrego em mim.

Referências

BUSATTO, Cléo. Contar e encantar, pequenos segredos da narrativa.  Petrópolis: Vozes, 2003.

CARMELO, Luiz Correia . Narração oral: uma arte performativa (2016). Em: https://core.ac.uk/download/pdf/84111534.pdf (04/04/2019)

MACHADO, Regina.  Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004.

SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Belo Horizonte: Aletria, 2012.

STEINER, Rudolf. Os contos de fadas. Sua poesia e interpretação. São Paulo: Antroposófica, 2014.

MATOS, Gislayne Avelar. O ofício do contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MATOS, Gyslaine Avelar. A palavra do contador de histórias. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

TAHAN, Malba. A arte de ler e contar histórias. 4. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1966.

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Josué Lima

Achei muito interessante essas colocações e percepções da autora Zeni.Gostaria de citar alguns trechos desse artigo, mas não sei como colocar a referência bibliográfica. Alguém pode me ajudar!

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