Após a criação do mundo, os Deuses criaram a humanidade muito parecida com eles próprios. Porém um grande defeito dos homens e mulheres afligia aos Deuses: o esquecimento. Homens e mulheres esqueciam de onde vinham e para onde iriam. Preocupado com isso, Zeus se uniu à Mnemosyne, Deusa da Memória, e gerou, em 9 noites de amor, 9 filhas: as 9 musas inspiradoras das Artes, que vieram ao mundo para agir no coração do homem e lembrar-lhe o que realmente é.
A arte é, ou seria, um presente dos deuses que leva ao autoconhecimento: as musas despertam os sentidos, agem nas emoções e lembram ao homem de sua transitoriedade no mundo, os reconectando com valores humanos, fazendo-os revisar suas perspectivas, gestos e atitudes em relação ao outro, por quem ou para quem a arte é feita.
A contação de história, enquanto experiência estética, desperta afetos e sentimentos para depois subir à razão e levar à reflexão e à mudança de comportamento. Quando o contador de história percebe esse caminho, que não é a sabedoria da história que transforma, mas o diálogo interno que elas suscitam, passa relativamente longe da moral explícita no texto e das próprias reflexões, consegue fazer opções conscientes de repertório e de estilo narrativo que cumprem um papel bem específico: o de humanização.
É fascinante como o processo de memorização de um conto, por mais estranho que pareça, percorre esse mesmo caminho. É só depois que uma história nos conecta com nossa humanidade, dialoga com nossas verdades é que está pronta para ser contada. Quando contamos histórias, contamos memórias. Quando contamos memórias, expressamos na fala os sentimentos que realmente sentimos. Se sentimos, a palavra ganha peso, entonação, o corpo se transforma na imagem narrada. A performance está pronta (ou quase).
Está pronta justamente porque o contador, durante seu ofício, se abraçou a Mnemosyne e por ela foi apresentado à Calíope, de quem ganhou a eloquência e o gosto por narrar histórias de heróis; à Clio que lhe ofertou conhecimentos da História e uma boa dose de criatividade; à Urânia por quem foi inspirado misticamente; à Polímnia que o dotou com a competência de narrar histórias e entoar hinos; à Erato, musa do desejo, que lhe deu o poder de fertilizar fantasias; à Tersicore que lhe ensinou desenhar com o corpo; à Melponeme, que além de lhe presentear com o dom do ritmo, lhe deu o poder de resgatar lembranças trágicas; à Thália, de quem herdou o dom do riso e do divertimento, de trazer alegria e reunir pessoas em torno de si, de falar o que se deseja ouvir; à Euterpe com quem aprendeu a medir, escolher e transformar as mais belas palavras em uma melodia mágica, encantadora, um canto de devaneio.
Se o poeta transforma uma ideia, uma intuição, uma sensação em imagem para só depois transformá-las em palavra, é por um único motivo: a imagem é sintética, é precisa, diz muito com muito pouco. E é justamente este pouco da imagem que cria o muito do devaneio.
O fio condutor da história é um dos elementos que levam ao encantamento. A narrativa é um fluxo contínuo, que na maior parte das vezes segue os passos de um único herói, sem desvios para fazer reflexões. Estas são do ouvinte. Se durante a contação estão ativadas a intuição, a emoção e a fruição estética, o contador não ativa o pensamento racional), deixa isso para o ouvinte, a partir das próprias experiências, da própria memória.
Creio que você leitor, percebeu, que encantamento é sinônimo de devaneio. Não é um gostar da história. É largar corpos e mentes e se entregar a ela, deixar que se transforme em um sonho consciente, um caminho aberto ao inconsciente, que uma vez sem fronteira, deixa sair de lá, memórias (pescadas pelas memórias contadas) em forma de sensações, sentimentos, intuições, imagens.
Que sabedoria não se ensina, se adquire, todo mundo sabe. Agora, que as boas histórias são tão sábias que não ensinam nada é meio estranho aos ouvidos. Pois é isso mesmo. As histórias não mostram verdades escancaradas, mas fazem sentir, fazem refletir. Não preciso dizer que tendemos a não acreditar nos outros, mas acreditamos em nós mesmos. Quando a história entra em nossos ouvidos, busca em nosso inconsciente uma cola afetiva e a ela se liga, transformando-a. O bom contador sabe disso, por isso não dá moral, deixa a reflexão por conta do ouvinte. Apenas oferta o alimento, não o mastiga, dá a essência pro outro fazer o perfume. As parábolas são exemplo disso: falam com imagens ao coração e para mudar comportamentos.
Se a mim coubesse escolher uma única palavra que definisse contação de histórias, apontaria “imagem”. Verdades não existem, com toda certeza, e com toda certeza digo: contador que não define imagem como contação não é contador.
A imagem nasce antes da palavra. Esta, nasce daquela, tanto nas histórias quanto na narração. Muito provavelmente antes da história existir, já havia um conceito, uma ideia, uma verdade, que antes de virar palavra racionalmente explicada, virou símbolo e depois, história.
E como criar imagens no ouvinte é o que move o trabalho do contador, isso precisa estruturar sua performance e o que estuda. O contador precisa compreender como as imagens são criadas e como elas propiciam um mergulho no inconsciente, num mundo imaginário.
Por exemplo, se o contador tem noção disso, sabe que no momento da contação não deve mostrar as cenas, deve buscar estratégias para a projeção das cenas no pensamento. Precisa ter noção que ele, contador, precisa sumir assim como as legendas em português de um filme estrangeiro, que deixam de existir a partir de determinado momento e não são lembradas quando se resgata a história assistida da memória.
O contador também precisa saber que quando a imagem sai de sua boca tem a asa do contador, mas quando pousa, tem a âncora do ouvinte, que são essas imagens que fazem o ouvinte refletir e mudar de opinião e de comportamento. Vou repetir algo que já disse: ser humano é um ser rebelde, que na maior parte das vezes precisa sentir que se governa (apesar de quase nunca fazer isso). Quando recebe uma imagem, a digere e faz uma reflexão sobre ela, pensa que a reflexão é sua, passa tê-la como referência e sua forma de ver e agir no mundo são alteradas. Jesus era mestre em fazer ver, era mestre em usar metáforas, imagens, com vistas a transformação do ser humano. Cada vez que faço uma caridade ainda vejo a cena que vi durante um sábado à tarde, numa leitura bíblica da catequese: “não toque trompetes quando der esmolas”.
Sim, as imagens grudam, nos acompanham pela vida a fora. Se o contador tem ciência disso, vai saber que tipo de história escolher, adequando-a a seus objetivos (o publicitário sabe muito bem disso); que memoriza as cenas e não o texto; que não representa, projeta no pensamento da assistência; que não mostra, faz ver.
Se o contador é um produtor de imagem, precisa formar-se como tal. Precisa ter momentos de fruição e deleite, precisa consumir arte em todas as suas manifestações, pois ela, de maneira geral é um sistema simbólico, de imagens. Depois disso, precisa se debruçar sobre o verbo que vira imagem, precisa ler literatura em verso e prosa, ouvir outros contadores, reaprender a pensar com imagens, preferencialmente metafóricas. Precisa aprender a olhar um açucareiro e ver ali uma mulher gorda, com mãos na cintura, a identificar formas nas nuvens e nas borras do café. Enquanto crianças, se faz isso naturalmente. O bom poeta o faz o tempo todo, com sentimentos, sensações e emoções.
Cérebro preparado, terreno adubado. Está na hora de escolher repertório, não com a busca de quem precisa, mas com a calma de quem espera o acaso chegar. E não por acaso essa escolha é feita a partir das imagens da história e não das palavras. A história boa pra ser narrada, na minha verdade, é a construída a partir dos símbolos, das imagens que se sucedem, e não aquela que é pautada na beleza das palavras, dos signos. Talvez isso explique o porquê da preferência de muitos contadores pelos contos populares aos autorais.
A história de vida do contador é espelho das histórias que conta. O que o levou a contar histórias também anda de mãos dadas com seu repertório, elemento central do seu trabalho e de sua performance. Isso vale para o contador ancestral, que tinha como missão repassar valores e cultura pelas narrativas, como para o contemporâneo, que muitas vezes sobe em um palco apenas para entreter.
É claro que a escolha do repertório não é ingênua. A história que um palestrante de uma multinacional conta tentando mudar a visão dos colaboradores é bem diferente da contada em uma escola, cujo objetivo é despertar o imaginário e levar à leitura. Porém também não é totalmente racional. Há algo de intuitivo nesta escolha. Às vezes a história cola de um jeito no contador, que esta parece pedir pra ser contada.
A história, portanto, precisa, primeiro, dizer algo ao contador. É essa identificação que vai dar peso às palavras, entonação à voz e expressão à face.
Falamos até aqui na escolha da história sob o aspecto do contador, mas ainda há outros dois: o ouvinte e o local onde a história vai ser contada.
A assistência também precisa se identificar com a história. E mais, precisa ser pescada pelo contador. Seus ouvidos devem ser despertos, seus olhos devem se virar para quem fala. Quando se conta para um grupo de adolescentes ou de adultos, estes precisam perceber que ouvir histórias não é uma atividade destinada apenas às crianças. Portanto, a primeira história que o grupo ouve é a certeira, a que fisga, a que resgata seus medos, seus desejos, que o toca emocionalmente.
Se conto para um grupo de crianças na faixa etária de nove anos, sei que as histórias de heróis que nascem desamparados e que se aventuram sozinhos no mundo farão sucesso. Como a criança hoje vive em pequenos grupos familiares, quase sempre se sente só e tem medo de ficar sem ninguém, com certeza vai se identificar com esta personagem.
Certa vez passei por uma saia justa, justamente por uma escolha errada. Fui chamada para contar a um grupo de um hospital de reabilitação motora com objetivo de distrair, entreter. Escolhi histórias divertidas, mas apenas quando estava no meio de uma facécia é que me lembrei que nela havia uma cena onde moribundos chamavam pela Senhora Morte. Depois de um suador, passei por cima desse fato, cortei parte da história, que deixou de ter tanta graça.
Agora, onde e como (com sistema de amplificação sonora ou não) vou contar também interferem na escolha do repertório, principalmente no que diz respeito ao tamanho da história. Quanto mais aberto o espaço, menor e mais temperada (com risos, medos e lágrimas) a história deve ser.
E assim com a escolha por contar determinada história é um ato afetivo, a opção por deixá-la de contar também o é. Causa estranhamento se eu disser que quando o texto sai do coração e vai para a ponta da língua está na hora de escondê-lo em uma gaveta? Pois é isso mesmo. Quando a história não se revela mais pro contador, quando deixa de arrepiá-lo, deve ser guardada, para que um dia, talvez, saia da hibernação, e lhe volte à boca.
Dizem que quando o homem começou a escrever, a memória saiu do pensamento e se prendeu ao papel. Gosto desta imagem para começar a falar de memorização da história: enquanto o contador não se libertar do suporte, do estatuto do escrito, do vídeo ou do áudio, não aprende a memorizar. Se você estiver lendo atentamente este texto, provavelmente vai se perguntar: “e memorizar se aprende?” Sim, se aprende da mesma forma que se aprende a ler e escrever (de repente, num clic, se entende o processo, … , se aprende – não entendeu o “clic”? pergunte a um alfabetizador que ele te explica direitinho).
Agora você deve estar me criticando porque ousei duvidar de sua atenção durante o processo de leitura deste material. Meu discurso foi intencional, pois esta habilidade também é um aspecto muito importante ao se decorar uma narrativa.
Desprendimento, aprendizagem, memória, atenção seriam as palavras chave dessa ação, se não faltasse uma: o erro. É a partir dele que construo o acerto, o que não devo esquecer. Sempre disse que o professor tem um privilégio: sempre tem plateia, que quando conta para alunos, se erra, aprende com o erro e não esquece mais.
E até sobre isso a sabedoria grega antiga nos ensina. Os aedos gregos tinham seções com audiências para memorizar seus textos, pois diziam que uma palavra contada ao vento se perde. Para a palavra se fixar é necessário o outro. Quando conto pra alguém, minha atenção redobra, me preocupo em fazer certo. Se erro, cometo esse deslize apenas uma vez.
É claro que cada pessoa aprende melhor de um jeito: vendo, lendo, ouvindo, escrevendo, desenhando. Para aprender uma história pode-se escolher qualquer uma dessas estratégias, mas o importante é que quem está disposto aprender produza ativamente as imagens do enredo em seu pensamento e sinta prazer em fazer isso (o prazer que se sente ao ouvir ou ler uma história libera endorfina, um hormônio que leva a aprendizagem). Outra dica para a memorização: ler diferentes versões da mesma história, a reflexão da comparação fixa as imagens.
Antes de suspender a temática da memorização ainda preciso retornar ao primeiro parágrafo e voltar a falar um pouco sobre o desprendimento. O contador precisa se convencer que suas palavras podem ser tão belas quanto as da narrativa que leu e que quando conta, usa o seu vocabulário, a sua gramática, o seu sotaque, o seu jeito de falar e da história usa as imagens, que transforma em verbo. É claro que pode usar as metáforas que já estão prontas, uma ou outra frase de efeito, mas precisa saber não tem algemas, que não precisa ser fiel à beleza das palavras, mas sim à da história.
É, só que não
A contação de história é um momento de fruição artística, precisa sensibilizar, e para tanto, ser intencionalmente planejada. Porém, faz parte da beleza da contação, ser espontânea, intuitiva.
O parágrafo anterior lhe soou contraditório? Pois é sim. E a beleza está justamente nisso. A performance do contador é fruto de muito trabalho, de estudo e de preparação, mas no momento do ato, precisa ser livre, produzida naquele momento, por um corpo que está em frente a outros corpos reais que se mexem, falam, brilham.
Artesão que transforma
barro disforme
em cerâmica arte.
Com alma, olho e mãos,
esculpe narrativas.
Ofício contemporâneo,
herança ancestral,
cicatriz de vida vivida,
calos que não calam.
E como é o trabalho de preparação do contador? Antes de continuar, preciso fazer um parêntesis: é claro que quanto mais habilidades artísticas (musicais, dramáticas e poéticas) e quanto mais preparado estiver o corpo, a voz e os pulmões do performer, mais opções terá. Porém, o trabalho fundamental para o contador é aquele relacionado com as histórias.
Diferentemente do ator, o contador não ensaia. Faz rodagem. Em outras palavras: depois que a história passou a fazer parte de suas memórias, começa a contá-la. Nas primeiras vezes que conta uma história, provavelmente ela ficará parecida com uma explicação. Aos poucos as verdades da história lhe são reveladas e esta vai deixando de ser história falada para se transformar em história vivida. A carne e a voz do contador se transformam na história que relata e que às vezes, mostra.
É assim que a gestualidade e a prosódia são construídas por um narrador que traz criativamente uma história do passado para o presente, que de repente está entre ele, narrador, e o ouvinte.
É a partir disso que o trabalho do contador se estrutura. Depois de escolhido o que contar, precisa fazer opções: o que será apenas contado, o que será mostrado e de que forma conseguirá criar as mais belas e sensíveis imagens na pessoa real que está à sua frente, experenciando a história.
Tendo a história pra si, o narrador poderá manipular o tempo (passado e presente que se misturam), a perspectiva (de onde vê e de onde narra) e o modo como conta (discurso adotados).
Em relação ao tempo, parece ser uma escolha simples: conto no passado e pronto. Mas não é assim. E nisso a contação difere muito do texto escrito. Quando resgato algo que aconteceu no passado e o conto aqui e agora, em muitas vezes o presente, para força de expressão é necessário. Explico melhor: sou professora de Língua Portuguesa e como tal apegada à correção textual. Há trinta anos explico: texto no passado, sempre no passado, apenas nas falas das personagens pode haver verbos no presente. Porém, certa vez fui transcrever uma das histórias que conto há anos e percebi que meu texto estava “errado”, pois misturava os tempos. Só então me dei conta que, por um motivo de expressividade, na contação, passado e presente são manipulados. O passado narrado ganha o status do presente da história. É bem diferente falar: “ele se levanta, olha nos olhos da mãe e diz…” de “ele se levantou, olhou nos olhos da mãe e disse…” .
A perspectiva adotada também é bem singular ao contador. Ele vê tudo, sabe tudo e opta de onde conta: às vezes de longe, às vezes ao lado ou de dentro da personagem: primeiro aponta um rato que entra correndo na sala, e num instante já o tem nas mãos pra logo ser, ele próprio, o roedor. Outra opção: a falas da personagem podem ser apresentadas em discurso direto ou indireto, com ou sem marcadores textuais de fala e enunciados, podem ganhar vozes, e identitárias ou não. Enquanto fala, o narrador pode encarnar, representar o personagem, ou só lhe dar voz.
E encantamento sem música existe? Não, não existe. É por isso que mesmo sem música a contação precisa ter ritmo, ter melodia, e por que não, harmonia. A fala toma a forma do significado da narrativa, com seus altos e baixos, diferentes andamentos e timbres. As frases passam a ser ditas com a pontuação correta, mesmo que com a tão imprescindíveis pausas. E compondo a imagem harmonicamente com o belo verbo e tudo o que sai da boca está o gesto, o olhar.
Resumidamente, o contador precisa saber ver, saber o que e como dizer, saber fazer para que armado desses saberes, possa criar um ato único, criativo, intuitivo, e talvez, de improviso.
Contar e manejar silêncios
se aprende no contar,
no meu
no seu
no dele.
Existem tantas formas de contar histórias quanto o número de contadores de histórias. Esta frase afirma que não existem regras fixas para se contar uma bela história como também delimita quem é o contador, artista que no ofício de seu trabalho faz opções estéticas, tem uma identidade, apesar da história.
O bom contador, ao contrário do que se diz por aí, não se esconde atrás da história. Ele a conta de uma forma artisticamente construída. Então, constrói também a sua fala e também a não fala. Um contador monocórdico é um contador chato. A própria palavra monótona (mono/tom) é construída a partir desse conceito. A fala de quem narra deve ter melodia, cor, peso, materialidade, contraste. E como se consegue isso? Com ritmos, velocidades, alturas, volumes e timbres que se se alternam. Sim, com música, com sons e pausas, com rimas e talvez métrica. Com uma fala fluida, bem pontuada. Com notas que sobem nas vírgulas e que descem nos pontos finais. Com suspenção da fala, com a respiração correta.
É claro que o ritmo da fala é ditado pela intenção da história. Uma sílaba é mais alongada, uma palavra mais marcada quando o que diz tem uma importância para a trama da história. Se um cachorro aparece uma vez e faz algo irrelevante, narro isso da forma mais descomprometida possível. Agora, se o cão retorna no final, seu nome será grifado com marca texto. Se a tartaruga anda, o ritmo da fala é lento, lerdo. Agora, se o cavalo galopa…
Essa é uma boniteza que se constrói aos poucos, contando a história, aprendendo suas verdades e reconhecendo nela as minhas verdades, que podem ser, ou não, as do ouvinte.
Não conta só com som
conta com o corpo,
reminiscência do trabalho do artesão,
que esculpe no ar
o que vê
o que sente
o que imagina.
Na literatura escrita se leem palavras, na oral não. Nesta se leem palavras embaladas a um som, à uma voz que tem entonação, ritmo, melodia, timbre, altura, intensidade, que faz ruídos e onomatopeias. Se leem gestos que, assim como a entonação da palavra falada estão à serviço da intenção do que é narrado, pois ele ora é amplo, ora mínimo; ora está em cima, ora em baixo; ora é forte, ora fraco; ora seco, ora ritmado. O gesto e a fala juntos, dão harmonia a esta sinfonia que é o discurso da contação de histórias.
O contador tem um corpo que comunica ao corpo que está à sua frente, que sente na carne a emoção da história narrada e a avalia com este mesmo corpo. É a energia da palavra vivificada que arrepia e deixa cicatriz; o olho no olho que transforma em verdade a mentira narrada.
Mas agora entra a grande questão: que gesto usar para que a contação não se transforme em teatro ou em uma língua de sinais estereotipada? A essa pergunta pode-se responder com pistas, uma vez que o que vale mesmo é o bom senso e a intuição do narrador.
A primeira delas é que o gesto sempre está à serviço da imagem da história, e não da palavra. Jamais se desenham palavras ou o contorno delas no ar. A função do gesto é fortalecer dentro do ouvinte a imagem mais significativa, o sentimento predominante e a sensação mais intensa que está dentro da história. Ele é um suporte e não um fim em si mesmo; é por isso que passa longe do que pode ser considerado como encenação, representação.
O gesto pode apenas embalar a fala do narrador, marcando-lhe o ritmo. Ou também pode mostrar o momento em que o narrador encarna diferentes personagens. Pode ser feito de corpo inteiro, mas que na maior parte do tempo é feito apenas com braços, flexões de troncos, caras e bocas.
É o gesto que delimita o espaço, complementa a ideia, dá força à palavra. Se o narrador escuta alguém ao longe, estica o corpo para trás, põe uma das mãos nos ouvidos, com os dedos abertos. Se escuta alguém perto, se acorcunda e sua mão se fecha em concha. Se ouve um segredo, são as duas mãos que vão ao ouvido. Se dois personagens ficam cara a cara, suas mãos se espelham. Se o herói sente angústia, a mão lhe vai à garganta. Se sente medo, se benze, beija seus patuás. Os gestos também apontam, mostram tamanhos, formatos. O narrador foge de gestos simplórios, estilo dança da Xuxa. O gesto pontua a fala, a conclui, a interroga, cria uma reticência…
Existem narradores que não contam com as mãos, fazem maravilhas só com o rosto e a voz. Eu sou mais adepta a Câmara Cascudo que dizia ser impossível falar com as mãos amarradas. Então, na minha verdade de narradora, a história não sai só de minha boca. Sai de todo o meu corpo, transformado, ele próprio em discurso. É o gesto que traz o passado da história para o presente da performance. É o gesto que faz o ouvinte intuir de onde o narrador testemunha a história.
O gesto precisa ser belo e inclusive deve ser admirado por aquele que o faz, que para de falar para apreciá-lo, que quando o olha, induz a assistência a fazer o mesmo.
O que é belo em um narrador, pode ser cômico em outro. Pra isso, este precisa se conhecer, ter ciência de suas habilidades corporais e suas limitações.
O contador não arruma sua roupa e seu cabelo, nunca descansa seu peso em apenas uma perna, não anda pra lá e pra cá. O personagem faz isso, o narrador não.
Uma dica para encontrar o gesto certo é marcar as imagens mais fortes da história e a partir delas criar um gesto preciso, com começo meio e fim, que contenha, dentro dele um belo movimento representativo da própria história, do que se vê, da ação ou do que se sente. A pausa da fala durante os segundos deste gesto e o olhar para ele é fundamental. Interessante também é olhar para a assistência e convidá-la com seu olhar de narrador a olhar o gesto.
Uma coisa é certa: quanto mais consciência o narrador tem do próprio gesto, melhor será a sua performance. Só que o gesto precisa ser saboreado como um vinho raro, um doce caro. O exagero compromete.
Até agora falamos de gesto: coloco como gesto: movimentos da face, dos braços, flexão de corpo e de pernas. Não incluo aí deslocamento. Há contadores que se dizem árvores, não saem de sua marcação de forma alguma. Alguns até contam sentados para não correr este risco. Não sou radical a este ponto, mas acredito que o deslocamento deve ocorrer só quando a história pedir. O deslocamento tipo tique nervoso não é proveitoso. O espaço a ser usado pelo contador é o espaço que ele alcança com seus braços, erguidos ou abertos.
Tendo tudo isso a respeito do gesto, coloco aqui sua extensão: o uso de objetos, bonecos e afins. Tudo o que foi dito sobre o gesto, pode ser estendido às formas animadas.
a boca do olho
pesa na alma
revela segredos
antecipa desejos
prediz intenções
mostra a sombra
indica o caminho
As tão necessárias expressões faciais criam empatia, fazem o ouvinte sentir o que o contador realmente sente, dão materialidade às sensações antes da palavra. Elas dão veracidade à narrativa pois os tornam cúmplices que conversam e segredam olho no olho.
É justamente por causa da cumplicidade que o narrador vê em alguns momentos a história no aqui e agora da performance, mas busca incansavelmente cada alma da assistência nos olhos que lhe miram.
Meu contar
diz quem sou.
Sei arrematar,
minha mãe tricoteira
me ensinou.
Me ensinou também
que perfeição
é a serva,
não a carrasca.
O narrador oral não é o narrador da literatura escrita, mais uma criação do artista. Ele é o próprio artista, pessoa de carne e osso, ser histórico, localizado geograficamente, inserido em uma cultura. Em alguns casos possui um alter ego, uma bruxa, um caipira ou um fantoche, mas ainda assim é uma de suas facetas, uma opção. O contador não precisa de nada além dele mesmo e isso lhe dá versatilidade. É capaz de fazer uma performance sem equipamento, sem cenário, sem figurino, sozinho. É claro que uma ambientação é interessante. O teatro tem a boca de cena, o contador pode ter um quadro de cena, uma espécie de biombo que é colocado atrás dele, que pode ou não ter ambientação. A roupa que usa não é um figurino, é vestuário, que talvez esteja no clima das histórias que narra, mas não o coloca dentro dela. O que o narrador precisa saber é que precisa ser visto e, principalmente, ouvido.
O bom senso rege a arte do contar, porém algumas ponderações ainda são necessárias. O próprio contador é um ser que pondera. Conversa com seu público, fala de si, da história, do mundo.
A primeira que deixo é que cada um de nós carrega arquétipos e as histórias trabalham com eles. Por isso quando for descrever um rei, precisa partir do pressuposto que o ouvinte já tem um modelo de rei que vai usar durante a contação. As descrições devem ser sucintas e se ater aos detalhes necessários à compreensão da história. Afinal, durante a seção, o ouvinte é o rei, tem sua cor de pele e olhos, seus dentes e cabelos. O detalhamento excessivo, as contextualizações desnecessárias para a história narrada também precisam ser aparadas. Um rei que chega de longe, é só isso, sua vida é outra história.
O contador não tem pressa de chegar ao fim. Saboreia cada uma das imagens que realmente vê como se cada uma delas fosse o doce mais caro, que se como devagarinho, para que cada pedacinho dele passe por sua língua.
O contador precisa ter coragem. Não necessita ou lhe bastam diplomas e certificados. Ele precisa dizer pra si mesmo que é contador – assumir este papel, nem que pra isso precise colocar um jaleco, um chapéu ou uma fantasia. O contador precisa acreditar na sua criatividade e conhecer sua identidade.
Dizem o Diabo fez um filho…
tão bonito, tão bem arrematado,
mas na busca da perfeição suprema,
o capeta burilou tanto o menino que…
furou os olhos e cegou a cria.
O contador precisa ir em busca da perfeição, mesmo tendo ciência que a perfeição não existe e a busca excessiva leva ao nada. Transmitir desejo, energia, entusiasmo. Ter paixão, brilho no olho. Estar inteiro ali, naquele momento, sentindo a história e sua audiência, se adaptando às duas. Não dar ouvido a seus sensores, sempre haverá vozes internas e externas dizendo o que não precisa ouvir. Não precisa estar dentro de padrões de beleza, precisa de identidade, precisa ser.
O tear é do contador
que os fios ancestrais
estica no urdidor,
e na lançadeira,
põe os atuais.
O pente é apertado
pelo desejo,
ora mais aberto
ora mais fechado.
Assim se tece a trama
emaranhando o
passado herança
ao presente
futuro esperança.
O narrador precisa conhecer o objeto que trabalha. Precisa entender que as histórias têm poder. Antes vamos delimitar sobre o tipo que história que vamos conversar:
Tratamos aqui das narrativas ancestrais, que foram construídas durante gerações e que ainda hoje são passíveis a alterações. Podem ser relidas com os olhos da atualidade. Não estamos falando das histórias da tradição pura. Não estamos falando da história morta. Falamos e fazemos o que sempre foi feito com essas histórias e por isso sobreviveram. Falamos da história que tem a sabedoria de vida ancestral, universal, mas tem o discurso de hoje e justamente por isso é permeável a fluxos externos, a temas da atualidade. É flexível e adaptável. A “fôrma” é velha, mas os materiais são da atualidade.
Então, no contar histórias a narrativa é ancestral, tecida por dezenas de gerações. Em cada fio há uma reflexão. Sabedoria de vida, aprendida e refletida, construída. O como e o porquê contar são contemporâneos, uma resposta a uma necessidade do hoje.
Nenhuma história é ingênua. Todas querem algo de nós além do entretenimento. Todas conversam com nossos desejos, nossas carências, nossas memórias. Todas conversam com o que temos. É por isso que em cada ouvinte e em cada contador a história pega de um jeito. A história tem verdades, quem a narra escolhe algumas, as quais deixa mais carregadas de intenção, à memória do ouvinte colam poucas.
As histórias são narrativas que escondem um texto instrucional. É como se vivendo a vida das personagens adquiríssemos a sabedoria de vida, aprendêssemos sobre a complexidade das relações humanas, e mais que isso, do desenvolvimento individual. A história boa tem duas jornadas, uma externa, que diz respeito ao eu e o outro, mas também tem a interna, de crescimento pessoal. Ao mesmo tempo que supera os problemas de existência e subsistência, a personagem se desenvolve, amadurece, aprendendo o que realmente importa. O desejo inicial, provavelmente muito ligado ao ter se transforma em outro ligado ao ser. As histórias dizem: o envelhecimento e a morte são reais. Te prepara, a vida é um ciclo, ela e as pessoas que por ela passaram é o que conta.
Os contos de fadas nos dizem: você errou uma, duas vezes, mas não desista. Aprenda, peça ajuda, escute sua consciência, cuide com as bruxas do caminho, persista. O erro é uma etapa do percurso, do caminho que leva ao encontro com o sagrado, pra não dizer com a felicidade.
Movimento presente,
que puxa pro lado.
Movimento passado,
que puxa pra trás.
Movimento ascendente,
que vai pra frente,
pro futuro.
E contador, a história ensina que final feliz existe? Não. Mostra a herança guardada por Pandora, a Esperança, única coisa que restou ao homem depois que a desgraça foi solta no mundo. A esperança é a fé em si mesmo, no eu herói que é responsável por sua jornada, por seu fatum (destino), é a fé no outro, que junto comigo age no mundo, pra deixá-lo mais belo, mais humano.
Com um presente,
o presente começou.
Com um presente, termina.
Passado inventado,
presente vivido,
sabedoria do homem,
atalho pra humanidade.