E as irmãs da Borralheira,
para calçarem o cristal alheiro
mutilaram os pés.
Estrada, cada um tem uma.
Com que história o contador trabalha? Com todas: as com dono, as sem dono; com as antigas e as contemporâneas; com as cômicas e as trágicas; com as de humor e as de terror; com as inventadas e as de vida; com as com métrica e com rimas. Um contador, então trabalha com todas? Jamais. O contador conta as que tiver desejo. Quando ainda é aspirante, experimenta aqui e acolá, copia seu mestre, o vídeo da internet, improvisa. Mas conforme mergulha no mundo das narrativas vai criando identidade, estilo e aí escolhe a que melhor lhe calça e segue sendo um contador de causos, um piadista, um pastor, um filósofo, um storyteller, um repentista, um amigo das fadas, dos deuses ou dos fantasmas, um declamador ou um cantor.
Então, para o contador, seu repertório e seus pés caminham pela mesma estrada. É claro que não falo aqui do ator e sua versatilidade, mas daquele que, formado pela vida e por outros contadores encanta com histórias.
E saber histórias é um saber que não está sozinho. Ele vem acompanhado do saber contar e do saber humano que a história carrega: saber ancestral, da vida e da academia; saber da carne, do atrito com o outro, do estudo, da ciência. Tudo isso posto em um caldeirão, cozido, mexido e remexido até virar emplastro, remédio pro corpo e pra alma.
O presente texto vai abordar justamente os saberes ligados às histórias, que eu contadora forjada pela vida, pela faculdade de Letras, pela profissão de professora de professores, por filha de mãe idosa e pela motivação de Quírion, conto. Se meu pé servisse em outro calçado, provavelmente esse texto estaria muito mais ligado à beleza das palavras, seus sons e arranjos, mas a minha história me levou a estudar a beleza do símbolo, das histórias orais contadas e compiladas desde o era uma vez.
São as histórias múltiplas, mutantes, sem autor, sem nacionalidade certeiramente definida que conto. São histórias imagens que, livres, viajaram o mundo, ganharam remendos e perderam gomos, que se casaram, tiveram filhos e chegaram aos nossos ouvidos pelo povo, por filólogos, evangelistas ou artistas. Histórias de heróis míticos e contos de fadas são nosso objeto de estudo..
O que apresento é apenas uma ínfima amostra e uma isca para que você leitor calce suas sapatilhas e siga seu caminho.
Se você já tem um percorrido, conhece o teor desse parágrafo, mas tenha um pouco de paciência, pois preciso colocar já de início que mitos e contos de fada são histórias para quem já passou da infância. São histórias que carregam muito mais que uma narrativa. São verdades nada inocentes, não só porque têm sangue e sexo, podem ser instrumento de alienação e dominação, mas porque falam a única língua que a alma escuta: a da beleza, a do símbolo. O lado bom (para o contador experiente) é que não vou falar dos compiladores-recriadores como Basille, Perrault, Grim(s) ou Andersen. Vou tratar sim da matéria prima de seus trabalhos e do meu trabalho: narrativas fantásticas. Histórias cuja origem é a origem do homem, a quem seguiram nas expansões, nas conquistas, no desenvolvimento tecnológico; serviram na fé, nas escolas, na diversão. Falar da história das histórias é falar da História da humanidade: os mesmos movimentos de migração, de assimilação, de aculturação, de domínio, resistência, luta e dominação. E é claro que não tenho essa pretensão aqui. Desejo apenas traçar um conhecimento mínimo necessário ao contador contemporâneo, urbano, que não aprendeu seu ofício com a família e busca uma formação específica.
E ainda tem mais…
O contador pode parecer ingênuo, seu trabalho pode parecer intuitivo, seus gestos espontâneos, seu repertório, aleatório. Porém se seu objetivo é humanizar, deve ter plena ciência que sua voz, seu corpo e suas escolhas devem estar vinculados a uma proposta de trabalho nada ingênua. Assim como hoje temos coachs, propagandas, políticos e religiosos que usam narrativas para persuadir, historicamente as histórias tiveram um papel social cujo objetivo pode ter sido manter a ordem vigente. Assim como temos contadores que as usam como um instrumento de autoconhecimento, de volição e de construção de um homem sujeito, responsável pela criação da própria realidade, tivemos contadores que as usaram como forma de resistência à aculturação, como forma simbólica de expressar conhecimentos, ideias e ideais.
Portanto se meu objetivo é fazer com que as histórias que conto entrem pelas orelhas dos ouvintes e os façam pensar, desçam para seus corações e os façam sentir, se emocionar e corram para suas mãos e os façam agir pautados na reflexão, na ética e nas virtudes acordadas pelas histórias, preciso ter plena ciência do que conto. E ao conhecer a história, não é só tê-la na ponta da língua. É compreender a que ou a quem ela serve. Essa compreensão guia escolhas e dá força à forma da performance.
Nascidas no esquecimento
Reminiscências de imagens
Cheiro do segredo do universo:
Histórias arquetípicas.
De onde vêm as histórias? De um fato, de um insight, de uma inspiração? Sim, mas as histórias que grudam, que permanecem e se fixam precisam ser uma forma simbólica que, mesmo sem racionalização, expresse uma verdade.
Verdade, qual é?
É o segredo da fé.
Problema existencial,
Busca espiritual.
O que acontece quando acordamos e lembramos de um sonho? O esquecemos, quase sempre isso é regra. Nos sobra apenas algumas imagens, com as quais compomos algumas narrativas para explicar a inquietação deixada. Uma criança personifica seu medo no lobo mau, no bicho papão e depois cria uma história para explicá-lo. De uma forma bem simplória poderia colocar que as histórias arquetípicas nascem assim: são primeiro uma ideia sem conceito, uma intuição, um sentimento, que aos poucos vai ganhando figurino, tempo e espaço. Não posso dizer que nascem mitos, contos maravilhosos ou sagas heróicas. Esse direcionamento é dado justamente por quem e pelo grupo que as cria, recria ao contá-las. Posso dizer sim, que podem nascer um mito, se transformar em ritual, em religião, em gesta heróica, em conto de fada, em lenda, em fábula, não necessariamente nesta ordem.
Na sequência, esboçarei uma tentativa de elucidação e contextualização desse processo de retroalimentação, colocando ainda, nessa receita, as dualidades popular/erudito, arte popular/cultura de massa, narração oral/literatura.
Mito: Arquétipovestido,
Conceito alegórico
Do eterno.
Não mente
Fala diferente.
A principal característica do mito é que este é uma verdade, que liga a civilização que o criou ao divino. Não tendo vocabulário para expressar o que intuía, cada povo que viveu sob a Terra, criou imagens permeadas de conceitos para representar a ideia do Uno e da criação do universo. Essas imagens ganharam narrativas, que se tornaram sagradas e se transformaram, em rituais, em religiões, em textos sagrados, conhecimento de iniciados, em instrumento poder, em dogmas.
Diferentes vasos
De diferentes povos
De diferentes tempos
Que carregam a mesma água,
Do início ao fim dos tempos.
Em outra oportunidade já coloquei a imagem de um homem olhando pro céu, se perguntando do porquê da vida e criando os mitos. Poderia acrescentar a essa imagem uma ponte que liga céu e terra: o herói, filho de um deus e um mortal, protagonista da narrativa terrena do mito. Gosto dela, porque explica a função da saga mítica: dar sentido à aventura do viver; e com ela consigo expor o paradoxo: o mito não é o enredo, mas o que ele esconde: a atemporalidade das dificuldades humanas: medo, frustrações, desejos, sentimentos, morte, e como superá-las. É isso que os heróis personificam: quando Hércules se coloca sobre um de seus joelhos em frente à Hidra, nos ensina que não se enfrentam problemas atacando-os imediatamente de frente, mas pensando sobre eles, reunindo forças e, sabiamente, agindo. O veneno da flecha de Eros explica o que é aquilo que poderia levar até o mais poderoso deus à decadência: a paixão – doença da insanidade e da dor profunda, cujo o único remédio é o tempo. De forma simples poderia colocar que a saga mítica representa uma imagem que está fora, agindo sobre o que está dentro do herói.
Esse tipo de história carrega em si a casca da civilização que o conta. É por isso que podemos dizer que as narrativas míticas têm um pé no tempo e outro no espaço. Se falo de Arjuna, imediatamente uma imagem hindu povoa nossa mente; ao dizer Teseu é uma atmosfera grega que surge: é o mesmo mito, com roupas diferentes.
Água derramada à terra
Cria raiz
Vira saci e lobisomem.
É muito provável que os mitos fixaram raízes, se misturaram às histórias locais, e ao fazer isso perderam valores simbólicos universais e pedagógicos e se transformaram em lendas, que justamente explicam algo localizado temporal e espacialmente. Aqui no Paraná temos a lenda do Monge da Lapa, cuja história mistura a vida de três peregrinos que realmente existiram ao mito de Dom Sebastião. As lendas são um prato grande e farto para justificar o injustificável, seja um fenômeno da natureza, seja o direito ao poder ou à propriedade, ou ainda a um assassinato, a um salgar de comida ou a um medo inexplicado.
Água que seca
É vento Perfume sem cor
Sem nome Sem identidade
E é provável também que os mitos criaram asas, ganharam o mundo e adentraram em civilizações que não acreditavam em seus deuses. Saíram dos templos e ganharam a cozinha das casas.
Conforme as divindades foram rechaçadas das narrativas, e essas ganharam a boca do povo, as imagens foram entrando no ser humano e se depurando para explicar o que acontecia e acontece dentro dele. É por isso que os contos de fada revelam a percepção individual de si mesmo. É por isso que se ouvimos a mesma história, ouvimos histórias diferentes e mudamos os tons de suas cores ao recontá-las.
É por isso também que os contos de fadas sempre retratam situações comezinhas, do dia-a-dia: casamentos, relações parentais, dramas domésticos.
Resumindo, enquanto o mito é uma busca coletiva, o conto de fada é a busca individual pelo sentido da vida. Seus monstros e bruxas não são seres terríveis que assombram cavernas e estradas. São conflitos internos, medos e angústias. E o enredo não é a aventura do protagonista, é cada um dos meus dias ou minha vida toda, é meu processo de autoconhecimento, de aprendizagem, de encontro com meu eu eterno. A pseudo morte de Branca de Neve é o aprisionamento na matéria, daquela que presa na rotina lavava, passava, limpava, e o encontro com o príncipe é a possibilidade de viver a espiritualidade, ou algo sublime, no aqui e no agora, antes da vida eterna.
Num sentido mais tasco, um conto de fadas poderia ser apenas a história do prêmio pelo bom comportamento da mocinha, mas se assim o fosse, seria apenas uma fábula – esse gênero tem muito mais que um valor moral, porém tende a não carregar valores simbólicos: são histórias fantasiosas que pretendem também fazer uma crítica à estrutura social da época em que foi escrita.
Os heróis viraram príncipes.
A terra, princesas.
E as bruxas e as mães,
coitadas, ao meio foram rachadas.
Mas quem levou a pior mesmo,
Foram os deuses pagãos,
o ogro e o dragão:
se somaram e criaram o capeta.
As diferenças entre histórias de heróis míticas e contos de fadas são tão evidentes porque esses se perpetuaram na boca do povo e foram compiladas a partir do final da Idade Média e do Renascimento como narrativa fantástica, e aquelas eram contadas por sacerdotes, poetas ou grandes contadores de histórias e foram registradas ainda na antiguidade por pessoas que, provavelmente, nelas acreditavam. Há nisso um buraco temporal de mais de 1000 anos.
Agora, o que é impossível é fechar o conto de fada em uma caixa e etiquetá-la. Ele pode ser tanto uma forma velada de preservar o mito, e temos exemplo disso muitos contos celtas e as próprias histórias do Rei Arthur, que veladamente carregam saberes rechaçados pela igreja católica, como uma forma também de se rebelar contra o dogma: quando o filho mais jovem, o mais pobre se rebela contra o dragão, é o povo que vence o tirano.
O vento que uiva
que carrega,
mistura, vira e revira
do tempo e do espaço da cremação
a fumaça amálgama do eterno
Os contos maravilhosos que chegaram a nossos ouvidos são um pouco como o povo brasileiro: fruto de vários povos, mestiços. Possuem reminiscências egípcias, persas, celtas, cristãs, hindus, greco-latinas. Provavelmente quase todos os contos de fadas que ouvimos, em sua origem, tinham um teor religioso muito mais claro – tanto é que muitos contos orientais que geraram os ocidentais ainda mantém a mensagem espiritual complexa – que, por perseguição religiosa, foi escondido sob a máscara de uma história ingênua para moças casadoiras e jovens em processo iniciático.
E sim, os contos de fada ocidentais também caminharam em paralelo à igreja católica. Perderam seus deuses míticos, mas encontraram em seu caminho ordens místicas druidas, alquímicas, templárias, maçons, gnósticas, maniqueístas, que os usaram como veículos para seus segredos e colocando neles elementos que se opunham à divisão Espírito X Matéria da igreja da Idade Média.
Essa “evolução” do mito para conto teve como resultado: a humanização do herói mítico, que ganhou certos vícios e vacilos nada heróicos; a divisão do bem e do mal: nos mitos, os deuses ora fazem o bem, ora o que é preciso para que o herói se desenvolva, ou seja, bem e mal são advérbios complementares; a feiticeira, que até então tinha o mote “quem bem me fez, bem receberá, quem mal me fez, mal receberá” é dividida em duas: na horrorosa bruxa que quer se vingar do mundo e na bela fada, mistura de Nossa Senhora com os feéricos, nem sempre gentis, seres celtas – o mesmo acontece com a mãe e a madrasta; os ogros, dragões, papagaios e deuses pagãos se transformaram em capeta; os protagonistas são divididos em três personagens que representam três fases de sua vida e seu aprendizado: um mais ligado à força física, outro à esperteza e outro à sabedoria, sendo esse último o mais frágil ou o mais débil (talvez o mais instintivo) e por isso, às vezes, representado pelo filho mais novo. O “vinde a mim as criancinhas, porque delas é o reino dos céus” não está só na Bíblia e na Qabala, mas também em toda a história em que o personagem com o ego fluido chega lá.
Houve também: o recorte da jornada mítica em pedaços que se transformaram em contos completos ou parte de outros contos que foram construídos com pedaços de outros mitos; o enxerto de uma moral clara e evidente da época em que foi contado e a transmutação de seu valor simbólico; o implante e a extração da morbidez e do grotesco em vários momentos históricos.
Não uma vez, era uma vez
e para sempre foram.
É possível pontuar, ainda, outras características do conto de fadas: o tempo fora do tempo, o lugar que é qualquer lugar e o protagonista que sou eu, que é você; personagens cujo nome nunca é próprio, mas uma característica física sua ou sua ocupação – rapunzel é uma leguminosa e cinderela um xingamento; se passa num mundo mágico e isso fica claro desde o início; há ajuda mágica, seja de um feiticeiro, de tecnologia, de alienígenas ou do dinheiro; o protagonista de origem nobre, mas, em desgraça, vai se armando com armas mágicas e atos bondosos que o ajudarão cumprir uma nobre meta: descobrir quem realmente é – e talvez quem o desgraça; absolutamente em todos os contos de fadas o protagonista se transforma, sai de um patamar espiritual para outro mais elevado, têm como motivador um pecado capital e parecem ratificar a expressão “há males que vêm pra bem”: sem madrasta má não há Branca de Neve ou Cinderela; sem bruxa não existe Rapunzel ou Bela Adormecida; sem lobo não há porquinhos ou Chapeuzinho; falam magicamente do drama humano, dessa aventura que é o viver, é o aprender.
E aquele que gosto
Veio de onde?
Com que o brinca,
o que esconde?
Até agora tratei muito dos contos de fada e do conto maravilhoso. Sei que muitos estudiosos os diferenciam e os classificam, colocando entre eles ainda os contos de ensinamento. Não vou explorar esse tipo de saber aqui, mas não posso deixar de apontar um tipo de história que me liga a meus ancestrais: o conto popular. A primeira vez que ouvi “Eros e Psique” inteiro me assustei; não com a narrativa, mas com as tarefas que a moça tinha que cumprir: duas delas eram iguaizinhas a de um personagem de uma história que minha avó, analfabeta, filha de imigrantes que vieram da Itália para construir a estrada de ferro Curitiba-Paranaguá contava. Essas histórias que ouvimos dos que já foram, mesmo que sem referência direta, são recriações de contos milenares. Toda civilização tem ou já teve um Nasrudim ou um Malazartes, um anti-herói ingênuo ou malandro, que nos apontam o dedo e nos mostram a ignorância e a idiossincrasia da sociedade.
Era uma vez,
foi e será para sempre,
o irreal, não falso, conto de fada.
Cada história representa seu tempo. Nenhuma é tão ingênua a ponto de ser apenas uma narrativa. As histórias populares são fruto da cultura, e ao mesmo tempo produtora e reprodutora da cultura, uma vez que carregam visões de mundo com o objetivo de inculcar valores com a estratégia pedagógica mais eficiente que o ser humano criou: a contação de histórias.
Arte
artesanato
manufatura
cultura popular
cultura de massa
alienação
libertação
A liberdade cabe ao contador de adaptá-las à sua sociedade, aos desejos do ouvinte, e à tecnologia disponível – lembro que hoje, mitos e contos de fadas estão no cinema: no pacote Marvel, em “Avatar”, em “Star Wars”, em “Cinquenta Tons de Cinza” e em quase todos os filmes construídos para atrair multidões.
Muito sutilmente aqui, entramos em outra discussão. Não vou discorrer sobre ela, mas peço a você leitor contador de histórias que reflita: a contação de histórias é cultura popular e como tal instrumento de preservação da identidade e resistência, mas também pode ser cultura de massa, instrumento de preservação da sociedade vigente e de alienação.
Contado e contante
Uma única história múltipla
De arte popular
À erudita literatura
Acima relatei como muitos mitos se transformaram em contos maravilhosos. O que escrevi ainda é que esses muitos desses mitos também nasceram de imagens ou de sonhos, histórias individuais que quando relatadas ao grupo, se fixaram, justamente por que eram relevantes, foram representadas, se transformaram em rituais, em histórias sagradas e depois religiões.
Foi quando perderam o valor sagrado que essas narrativas ganharam, na pena do rico, o nome de literatura e na boca na boca do povo o de conto popular. O caminho que fizeram foi sinuoso e a estrada de duas mãos, com o clássico alimentando o popular e vice- versa. É claro que esses percursos não foram nada fluidos. Foram muitas as barreiras e os desvios e de ordens diversas. É sobre essa jornada que vamos conversar agora. A jornada do contado, que se atrela à do contante.
Nas civilizações mais primitivas, a mesma voz que entoa feitiços, conta histórias. Nas que se sucedem a elas, são os sacerdotes que as contam e depois, as escrevem.
Na Grécia de Homero, o poeta convocava as musas para na figura do rapsodo contar poemas épicos ou, na do bardo, entoar canções para os nobres. Ao povo essas obras chegavam aos ouvidos de forma acidental ou incidental, e quando reproduzidas se tornaram prosa, sem registro, sem métrica, sem rima.
Na Idade Média, quando os cantores errantes, menestréis e trovadores se incumbiram de levar as gestas heroicas tanto aos palácios como às feiras, disseminaram matéria-prima ao escritor erudito e ao povo. Alimentaram as cantigas de amor e as canções heroicas da nobreza, nas vilas transformaram em narrativas fantásticas, canções e versos populares, em provérbios e jogos de palavras e à beira do fogão de lenha ganharam um tom mais intimista, se misturaram com sonhos, fatos fantásticos, medos e sombras individuais.
Com a ascensão da burguesia o gosto popular também ascende. Os seus contos ganham outro valor e a literatura volta os olhos para a arte do povo. O Romantismo é exemplo disso. A ópera e uma infinidade de escritores que passaram a escrever contos fantásticos também. O sucesso das coletâneas publicadas pelos Grimm é reflexo do letramento das pessoas de estratos populares, e a ampliação do alvo do mercado editorial.
Ao próprio Hans Christian Andersen, não agradava, de início, escrever contos destinados às crianças.
E os contos que ouvimos
Foram escolhidos
Por homens nada nobres
Que os recolheram de mulheres pobres.
Cada vez que uma narrativa popular foi escrita, foi temperada ao gosto e a época local e se subordinou a outros interesses (econômicos, políticos, ideológicos, de manutenção da ordem vigente). E depois que circulou em muitos saraus voltou ao povo, ora como cultura popular, ora como cultura de massa, como símbolo de resistência e identidade ou como instrumento de alienação.
Porém, assim como ganharam status os perderam rapidamente. Durante o Iluminismo, foram rechaçados. Para Rosseau, essas histórias contaminavam a pureza da infância. No século passado, foram tachados de alienantes ou politicamente incorretos. Foi só quando se passou a valorizar a identidade do povo que voltaram a baila como cultura popular, ou quando a ciência identificou neles o material simbólico de que são constituídos que ganharam credulidade.
Hoje a estrutura dos contos de fada está no cinema em filmes de heróis, em comédias românticas. Assim como os antigos contos de fada são feitos para as massas, esses filmes também são. Poderia aqui fazer um paralelo. Contos de fadas originalmente eram cultura popular, feito pelo e para o povo. A partir do momento que literatos voltam seus olhos para eles se tornam arte erudita e depois, cultura de massa, e como tal, instrumento de inculcação de valores religiosos, morais, ideológicos. Contos de fadas que originalmente demonstravam a força do feminino, colocaram a mulher no papel de subserviência. Histórias de heróis que ensinavam agir pautados no livre arbítrio, inculcam uma ideologia patriótica. O interessante é observar como esse tipo de narrativa se fixa justamente quando a religião perde a força de seus símbolos compensatórios, quando os mitos ou os símbolos nacionais perdem a força. Porém esse não é o meu foco de estudo, que a princípio são as histórias que o contador conta.
Então, com que histórias o contador trabalha? Com todas que tiver desejo e forem iluminadas por uma escolha racional, intencional e consciente. O contador é sujeito, precisa conhecer a que serve.
REFERÊNCIAS:
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FRANZ, M.-L. V. O feminino nos contos de fadas. Petrópolis: Vozes, 2010.
____________A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo: Paulus, 1990.
A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Ed. Paulinas.
O significado dos motivos de redenção nos contos de fadas. São Paulo: Cultrix.
STEINER, Rudolf. Os contos de fadas. Sua poesia e interpretação. São Paulo: Antroposófica, 2014.
CAMPBELL, Joseph . O HEROI DE MIL FACES – 1ªED.(2007). Editora: Pensamento
PROPP, Wladimr. A MORFOLOGIA DO CONTO MARAVILHOSO. Editora: CopyMa
rket.com, 2001 (1ª ED: 1928)
. Raízes históricas do conto maravilhoso. Editora: Martins Fontes (2003). (1ª Ed: 1946)
VOGLER, CHRISTOPHER. JORNADA DO ESCRITOR: Estruturas míticas para escritores. NOVA FRONTEIRA, Rio de Janeiro, 2006 | 2a. Edição revista e ampliada