No aconchego de um turbante

O único filho do velho vizir não demonstrava ter herdado a sabedoria do pai. Com a morte deste, porém, herdou-lhe toda a fortuna.

Logo empenhou-se em gastá-la. Novos palácios, novos elefantes, novos trajes suntuosos, novas jóias, novas babuchas bordadas. Fez-se imperioso ter um novo turbante.
Chamados, os mercadores de tecidos derramaram as seus pés, damascos, veludos, brocados, cobrindo de cores e brilhos o mármore do salão, sem que nada satisfizesse o exigente jovem. Afinal, entre tantas, escolheu uma peça de delicada seda cor de palha entretecida de fios de ouro. E, para surpresa de quantos o rodeavam, exigiu que fosse toda ela utilizada na confecção do turbante. Haveria de o maior jamais visto por aquelas paragens.
Enrola, enrola, enrola, depois de muitas voltas o jovem viu-se coroado pelas espirais macias que, sobrepostas umas às outras, avançavam para lá de sua cabeça sombreando-lhe o rosto e os ombros, turbante amplo como um guarda-sol, que foi arrematado à altura da testa com uma esmeralda do tamanho de um ovo, e um discreto penacho.
Agora o filho do vizir podia, de modo condigno, pensar em outras maneiras de enfeitar sua vida e sua pessoa.
Estava justamente sentado em um banco do jardim, envolto nessas meditações, na manhã de quase verão em que uma cegonha, chegando cansada da longa migração, viu naquela estranha espécie de ninho a possibilidade de instalar-se sem delongas. Num ultimo bater de asas, pousou bem no meio do turbante, eriçou as penas espantando a poeira da viagem, dobrou as longas pernas, ajeitou-se, e fechando as pálpebras pálidas adormeceu.
Paralisado de surpresa, o filho do vizir perguntava-se o que fazer. Espantar o animal tão benfazejo era impensável, não se enxota a boa sorte que nos acolhe. Compartilhar com ela o turbante parecia impossível. De momento, porém, não havia outra solução à vista. Não seria por muito tempo, pensou o jovem. Quando a cegonha acordasse, certamente buscaria pouso mais conveniente, uma boa chaminé, um topo de telhado, uma árvore.
Imóvel, o filho do vizir esperou.
Mas se ele havia pensado com sua cabeça, outra era a cabeça da cegonha. Acordando muitas horas depois, ela olhou em volta, e pareceu-lhe evidente que, fosse onde fosse, jamais conseguiria fazer com seu duro bico e com gravetos secos ninho acolhedor como aquele. Nunca suas penas haviam sido acariciadas por contato tão suave. E até mesmo o leve perfume que emanava do turbante a envolvia como uma grado. Encolhendo em ondas de puro prazer o longo pescoço, a cegonha refestelou-se.
A princípio no palácio e logo na cidade, comentava-se. Eleito por uma cegonha, o filho do vizir já não aprecia tão leviano, dotes ocultos haviam de ter motivado aquela escolha. E de fato, o jovem, andando com passos pausados para manter o equilíbrio de tanto peso, adquiria postura mais severa, uma certa dignidade parecia transmitir-se a seus gestos. Nem mais se interessava por festas – e como poderia entregar-se a danças ou farrear com amigos, carregando aquela alada presença que mal via?
Pela primeira vez consciente da própria cabeça, o filho do vizir descobria-lhe outros usos. Sem poder cavalgar, sem participar de torneios ou caçadas.

Extraído de: 23 histórias de um viajante
Marina Colasanti

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