O aquário

– Nada disso. Espere sua vez. Que negócio é esse? Pois se existe fila, fique na fila!
– Mas vocês não vêem que eu estou farto disso aqui? – falou Clóvis ligeiramente indignado.
– Todos nós estamos, e você não é melhor do que os outros.
Clóvis calou-se e nadou em direção de uma das paredes de vidro do grande tanque. Seu vulto vermelho apresentando no dorso riscos dourados, sua cauda imensa transparente e creme, se revolvendo sinuosa como um leque, apareceu refletindo no vidro de fronte.
– Como era bonito! Então porventura não era mais bonito e melhor que os outros? Ora, aqueles peixes não se enxergavam mesmo! Uns peixes brancos pálidos, anêmicos, feios!
Deu um muxoxo e continuou a nadar dando voltas e reviravoltas.
Enquanto isso ia pensando. Como os homens estragam tudo. Mas era bem-feito. Servia de lição para ele. Aquela mania sua de reclamar de tudo, de achar que o grande açude da fazenda era uma coisa horrível. Que nascera para a aventura. Para viajar por grandes lugares, por águas novas e estranhas. Agora o que seria do seu futuro? Quando chegaria a sua vez de deixar aquele imundo aquário de vidro e livrar-se da companhia daqueles peixes horrorosos e mal-educados?
Naturalmente que os peixes deveriam ser como os homens. Pelo menos no tocante às diferenças sociais. Pois não era sabido que os homens melhores nascidos eram mais considerados? Agora uns peixes vagabundos, suburbanos, sem raça, sem eira nem beira, completamente sem compostura… aqueles outros que não possuíam alma e bom-gôsto tinham por obrigação reconhecer isso e dispensar que ele, um peixe de classe, ficasse na fila e aguardasse a sua vez. Desaforo!
O pior não era ainda isso. O pior era o cheiro da casa de aves. O odor fedorento, desagradável que vinha do cercado das galinhas. Ou o rumor infindável dos papagaios e periquitos reclamando em voz alta o dia inteiro. Que casa de aves vulgar! Ali se encontrava de tudo. Galinhas, araras, tartarugas, pavões, perus, passarinhos.
Credo! Que melancolia! Antes a fazenda. Antes mesmo o açude. Lá pelo menos poderia ver o sol nascer, os cavalos vindo beber água e saber que os outros peixes eram do mesmo nível social que o seu. Lembrou-se das palavras de sua professora, Dona Quitéria:
– Menino, deixe de sonhar. Perca essa eterna mania de pensar em viajar. Esconda-se quando vir que os homens vêm com redes à procura de vocês. Nada vale mais que a liberdade. Aqui você tem a companhia, o carinho dos seus. Isso é o mais importante.
– Qual, Dona Quitéria. Eu sou moço. Quero viajar, conhecer novos mundos. Não vê como sou bonito? Analisando bem, não nasci para viver no fundo de um açude comum.
– Está bem, meu menino, aquiescia ela com bondade. – Só o tempo consegue ensinar. De nada vale a experiência dos mais velhos. Mas de uma coisa não se esqueça: Os homens… Os homens não têm coração e estragam tudo.
Parecia até milagre que aquilo acontecesse assim. Quando o relógio da igreja perto batia três horas, geralmente na casa de aves, uma sonolência morna se propagava pelos olhos de todos os seres. Mesmo com os homens, mulheres e crianças entrando no recinto quase sempre curiosos, mesmo com as exclamações de espanto, todos os bichos cochilavam. Por sinal era um alívio. Grande era o meu esforço para não dormir nessa hora, porque nas vezes que não conseguia dominar o sono, uma insônia noturna, cruel, me fazia compreender a extensão das horas e o comprimento de uma noite onde as estrelas estavam proibidas de aparecer.
Nessa hora da tarde forçava meus olhos desmesuradamente abertos e voltava a observar coisas que eu já conhecia de muitas análises, tal a pobreza do ambiente.
Por encontrar-me -de olhos abertos, foi que vi aquela senhora alta e elegante, trazendo umas mãos compridas e finas, onde a luva encobria a harmonia dos dedos, aproximar-se do aquário.
Seu dedo indicador se volveu para o aquário enquanto o dono da casa a acompanhava com aquele sorriso coberto de dentes de ouro.
– Aquele vermelho…
Por decência, deveria chamar os outros que dormiam. Mas qual o quê! Afinal ela me tinha escolhido espontaneamente. Tamanho era o meu medo de que ela desistisse de me levar que entreabri minha cauda em ondulações suaves, tornando-me mais belo e fazendo o mínimo de ruído para não despertar os outros.
– Pois não, madama. Esse é o último que temos. Dentro de alguns dias chegarão os outros dessa qualidade.
– E esses outros? esses feiosos?
– Esses, madama, são peixes para viveiros, para se criar em poços de rios, em lagoas… São peixes feios, vagabundos, que não resistirão ao aquário.
– Então eu levo esse!
Nem bem a rede penetrou dentro do tanque de vidro, contendo a respiração, saltei emocionado dentro das malhas de barbante. Os outros acordaram e passado o estupor, começaram a dirigir-me frases vulgares e de baixo calão, impossíveis mesmo de reproduzir.
Uma asfixia momentânea agrediu a minha garganta, meus olhos se dilataram ao sentir-me fora d’água. Nem sequer tive forças de responder à fúria daquela medíocre populaça. Antes talvez assim. O desprezo e o silêncio seriam a melhor resposta.
Minha angústia abrandou quando fui novamente metido numa casinha redonda de vidro. Uma sensação de paz tolheu os meus primeiros movimentos. Só aos poucos, girei à volta daquilo que os donos da casa chamavam de aquário. A sensação da água limpa e fresca, livre do cheiro e do contacto dos outros peixes, trouxe-me um sentido de paz e beatitude que não existiam para mim, desde a minha retirada do açude.
Fomos levados para um enorme automóvel (depois é que eu soube que aquela casa pequena e caminhante, macia e de cheiro estranho se chamava automóvel) e andamos, andamos, fizemos curvas, paramos, continuamos a andar; tudo isso produzindo em mim uma espécie de tontura que me paralisava no mesmo canto, impressionado com as pernas grandes e cruzadas da minha nova dona.
O chofer me levou para dentro de casa e fui entregue com o meu aquário a uma empregada negra que sorriu mostrando os dentes muito brancos
A dona entrou na sala e recomendou:
– É preciso que se mude a água desse aquário todos os dias.
– Onde é que madama quer que coloque o aquário?
Ela olhou a sala e divisou o piano negro inteiramente nu e brilhante.
– Em cima do piano. Mas veja de colocar um paninho debaixo, para não estragar o móvel.
E assim, fui definitivamente colocado sobre o piano.
Respirei aliviado. Agora sim. Tinha minha casinha própria. Sorri embevecido. Vou dar um jeito nessas plantinhas que estão mal colocadas… Pensava milhares de coisas ao mesmo tempo. Só o fato de sentir-me longe do aquário, dos peixes sujos, do barulho das aves, o odor desagradável das galinhas…
E durante dois dias, tudo era novidade para mim. Olhar os grandes espelhos da sala, os quadros de moldura dourada. Os livros encadernados nas estantes. Até uma harpa sempre calada e misteriosa era motivo de encantamento.
Todas as manhãs a empregada preta vinha trocar a água usada por outra fresquinha e límpida.
Muita coisa aconteceu para que novas experiências de vida se desabrochassem ante os meus olhos. Muitas horas felizes decorreram até que meu coraçãozinho quase rebentou: acabava de descobrir que estava completamente em solidão…
Foi como se a pancada do relógio se houvesse mudado para o meu peito: solidão… solidão:.. solidão…
Dia e noite girando sobre o meu corpo. Quando havia luz rodava sobre a minha sombra. Quando não havia, sobre o silêncio de tudo.
Ah! se ao menos viesse um peixinho lá da fazenda para conversar. Fazer companhia… Assim pensava nos primeiros dias.
Até o meu orgulho se quebrou: Mesmo que viesse um daqueles peixinhos feios… isso porque os dias se passavam… Devia ser aquilo o significado de uma célebre frase ele Dona Quitéria quando insistia em nos dar aula de filosofia:
– “A solidão só tem uma coisa a que se compare: a velhice dos homens.”
Algo em mim se revelava maduro, porque as coisas começavam a ter um significado mais forte na vida. E a solidão era a pior de todas as coisas…
Aquele era o mundo de viagens que eu imaginava. Era a realidade triste dos meus sonhos. Sair de limite grande para outro maior ainda.
O açude volvia ante a minha saudade. Até as garças brancas que apareciam ao entardecer se tornavam mais belas nas minhas lembranças. E aos pedaços e aos poucos uma série de reminiscências, despertava em mim, desde os primeiros momentos em que descobri que vivia e que cada coisa, devagar, ia tendo o seu significado.
Os momentos antigos eram os mais demorados na lembrança e tornavam tão vivos como se estivessem acontecendo a cada instante que neles pensava.
Meus olhos inocentes perguntavam, olhando tudo curioso. Anoitecendo, era preciso que mamãe fosse me buscar na tona do açude da fazenda.
– Vamos, filhinho, daqui a pouco vai ficar noite.
Vamos dormir?
– O que é noite, mamãe?
– Noite, meu filho, é aquela águia preta que vem chegando lá em cima. ¬
– E o que é lá em cima?
– Lá em cima é o céu.
– E o céu o que é?
Mamãe apontava o céu e comentava com paciência.
– Criança não pergunta tanto. O céu é tudo aquilo. Agora, vamos.
– Não, mamãezinha, só um instantinho. O que é aquilo no céu? Aquelas coisinhas… Aquilo lá, que sempre vem com a noite?
– Aquelas coisas brilhantes são estrelas.
E vendo que eu não conseguia mesmo entender mamãe se tomava de carinhos e meiguice.
– Meu burrinho… os homens é que chamam aquilo de estrela. Os poetas chamam aquilo de lagrimas… mas na verdade são pintas. Assim como essas que você tem pelo corpo. Pois estrela é sarda na pele da noite… Compreendeu?
Tornava-me meio desanimado.
– Tudo não, mamãe. Só um pouquinho. Vou ficar pensando depois.
– Isso. E agora, vamos?
– Vamos.
Enquanto nadávamos lado a lado e devagar para a nossa toca, ainda arrisquei uma pergunta.
Mamãe, todos os homens fazem a mesma coisa? Como assim, filhote?
Sim, se todos os homens vivem para trazer cavalinhos para dar banhos no açude?
Mamãe riu.
– Nada. deles fazem muitas outras coisas. A vida dos homens é complicada. Existem outros homens além dos que você vê dando banho nos cavalinhos.
Voltava àquela tristeza imensa e eu me via sozinho dentro do aquário. Sozinho. Sozinho…
Suspirava e voltava a ser menino no açude.
– Positivamente, mamãe, eu não compreendo, mamãe por que essa água é tão dura! e batia com a ponta do nariz naquela dureza.
– Meu filho, isso não é água. Isso é a terra dos homens. È a terra e terra c a terra sempre foi dura. Ela existe para fazer limite, fronteira para segurar as nossas águas…
E tantas outras coisas iam e vinham na minha lembrança, semelhantes ao vento que irritava as águas do açude e criava ondas e mais ondas. Minhas saudades se assemelhavam àquelas ondas…”
Na quinta noite, quando nem sequer me bulia dentro d’água, morrendo de tristeza, vi que uma coisa brilhante como uma antiga estrela aparecia se aproximando.
Meu Deus! não era estrela e sim um vaga-lume que montava numa aranha. Ai! que linda aranha! Usava uns óculos na ponta do nariz. Trazia diversos cabelos brancos surgindo debaixo da touca e se apoiava, manca, numa bengala.
Ela me deu boa noite e principiou se aprestando.
– Eu me chamo Rosa Boaventura. Estou para lhe fazer uma visita já faz dias. Mas o senhor sabe, a idade – sorriu ela se..desculpando.
– Ora, Dona Rosa, que enorme prazer a senhora me dá.
– Pode-se saber a sua graça?…
– Naturalmente. Clóvis Eugênio de Vasconcelos e Sousa. Um criado à sua disposição e um coração para lhe servir…
– Muito obrigada. Que educado o senhor é! E que belo nome. Sangue azul, pois não? Paulista de quatrocentos
Sangue azulíssimo. Português de oitocentos anos.
– O senhor veio do mar?
– Não. Nasci num palácio de criação de peixes de raça. Na minha opinião, o mar é um pouco… como direi? Vulgar… e grande demais. Há muita mistura, não acha, Dona Rosa?
– É o que ouço dizer. Particularmente, não sinto grande simpatia pelos peixes do mar. Por um simples motivo… êles cheiram muito mal… E que tal a vida do senhor no palácio do açude?
– Uma beleza, Dona Rosa. Um deslumbramento. E contei toda a poesia que nos cercava.
Falei dos campos dourados de sol e de milho amarelo. Da mata repleta de passarinhos multicores. Do canto de todos os pássaros. Dos cavalos de corrida que nasciam pequeninos e eram criados correndo e crescendo livres pelos pastos esverdeados. Todas as coisas da natureza, todo o cenário da fazenda se lavando no sol moreno e mormo.
Falei da noite que vinha lavar as estrelas nas nossas águas. Contei das garças de penas de sorvete se colorindo de cor-de-rosa ao entardecer.
Até um cavalinho cor de ouro que mais tarde estava fadado a ser um grande campeão, eu contei. Até mesmo do primeiro susto que esse cavalinho me deu quando pela primeira vez o encontrei bebendo perto de mim… Depois, da nossa grande camaradagem. Da nossa intimidade. Ele chamava-se Lula e era filho de Dona Gema, uma senhora de raça de corrida.
E desabafando a minha solidão de muitos dias e muitas noites, fui contando, contando.
Contei mais: da noite e dos seus mistérios. Quando as ninfas d’água saíam dançando sobre a superfície, envoltas em gases transparentes. Quando o açude se cercava de um colar de vaga-lumes selvagens para que os faunos viessem da mata, tocar flauta na nossa beira. Quando a última estrela da manhã vinha lavar o seu rosto em nossas águas pra então bocejar e procurar correndo a noite que se fôra e então dormir, dormir.
Falei tanto que, quando demos fé, o relógio da sala cantava a cantiga das três horas…
– Meu Deus! – gemeu Dona Rosa – Que tarde é. Que dirá meu marido? Dartagnan vai ficar furioso. Não posso nem dizer que fui ao cinema, porque já não é mais hora.
Depois, lembrando-se de alguma coisa, comentou: – Dartagnan é um aranho com quem me casei há setecentas e oitenta horas…
– Boa noite, seu Clóvis, amanhã eu voltarei…
– Venha mais cedo e nem pode imaginar o quanto prazer me deu, conhecendo-a.
No dia seguinte ela voltou em companhia do vaga-lume que servia de lanterna, do Sr. Dartagnan e de um grilo obeso. Tornei a contar tudo da véspera. Eles se entusiasmaram e retornaram mais cedo ainda, com mais dois novos amigos, um pernilongo vesgo chamado Guilherme, e uma lagartixa muito pintada que fazia questão de ser tratada como Baronesa de Porongaba.
E eu contei e recontei a história. Mas no dia que se seguiu e êles voltaram, quando eu tornava a falar nas minhas histórias êles principiavam a bocejar e muitas vêzes terminavam as minhas frases antes de mim. Então uma tristeza e uma espécie de receio atacaram-me doridamente.
O grilo obeso perguntou fatigado:
– O senhor só tem dessas histórias assim molhadas? Com essa pergunta retiraram-se todos, meio amolados e resmungando.
A noite seguinte se desenvolveu vazia e sem visitas. A tristeza tornou a fazer coro com o meu silêncio.

As coisas cada vez pioravam mais. Nem a empregada mudava a água do meu aquário…

Eu tinha certeza de que há três dias ela não procedia a limpeza na minha casinha de vidro… E no açude, sabia que no açude a vida exultava de vida! Nem queria lembrar-me das palavras de Dona Quitéria.
Dois dias depois a dona da casa apareceu na sala, olhou o aquário e comentou para a empregada.
– Você tem mudado a água do aquário?
– Todos os dias, madama.
Botei a cabeça do lado de fora e gritei:
– Mentira, madama, há cinco dias que ela não limpa a minha casa. Há cinco dias que me sinto asfixiar aos poucos com essa água velha e pesada.
Mas: ninguém ouviu o meu desespero.
Na manhã seguinte, Clóvis amanheceu emborcado.
A empregada que veio espanar o piano, bateu com o espanador no aquário para assustar o peixinho. Mas ele não se moveu. Ficou um momento espantada. Depois foi falar com a patroa.
– Ih! Madama… O peixinho do aquário morreu!… Madama revolveu-se sonolenta na cama.
– Telefone, – bocejou – telefone para a casa de aves e peça outro igual.
– Mas o que a gente faz desse, madama?
Ela bocejou mais forte e murmurou, quase dormindo:
– Dê para o gato!…

Por: José Mauro de Vasconcelos
Extraído de: Coração de vidro

 

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