A morte e o rei

Noite, ainda não. Mas as nuvens tão escuras, que era como se fosse. E nesse escuro pesado, envolta num manto, a Morte galopava seu cavalo negro em direção ao castelo. Os cascos incandescentes incendiavam a grama. Desfaziam-se as pedras em centelhas.

Diante da muralha, sequer chamou ou apeou para bater ao portão. O manto estalava ao vento. O cavalo escarvava com a pata. Ela esperava.

E logo os pesados batentes se abriram num estridor de ferragens. E a Temível foi levada á presença do Rei.

– Vim buscar-vos, Senhor – disse sem rodeios.

– Não contestaria chamado tão definitivo, sem boa razão – respondeu o monarca, com igual precisão. – Peço-lhe, porém, que não partamos já. Realiza-se amanhã um torneio nos jardins do castelo. E tenho certeza de que sua presença dará outro valor à disputa.

Um instante bastou para a Morte avaliar o pedido. E concordar. Afinal, um dia a menos pouco pesaria para a eternidade. Mas muito pesariam os que ela havia de levar.

Recolheu-se, pois, esperando o amanhecer.

Ainda no escuro, agitava-se o castelo preparando o torneio. Cavaleiros chegavam de longe. Tendas eram armadas nos jardins. Fogueiras ardiam nas oficinas dos armeiros. Quando o sol veio, farfalharam as sedas, os galhardetes, as folhas das árvores, e um mesmo brilho metálico saltou dos olhares, das couraças, das jóias das damas. Em breve, soaram as trombetas, os cavalos partiram a galope. E o sangue floresceu sobre a grama.

À noite, a Sussurada novamente dirigiu-se ao Rei.

– Senhor, em minha morada esperam por nós.

– Na minha também, Senhora, somos esperados – respondeu o Rei, com voz dura. – Informantes acabam de me revelar que um grupo de conspiradores está pronto para levantar suas armas contra mim.

E depois de ter dado tempo para que ela avaliasse suas palavras, acrescentou em tom mais baixo, quase envolvente: – Os que se escondem nas sombras precisarão da sua assistência.

Amplas são as sombras, pensou a Morte, calculando sua parte. E mais uma vez concordou com em adiar a partida.

Ao entardecer do dia seguinte, um mancebo foi apunhalado num corredor escuro, um ministro foi passado ao fio da espada junto a uma coluna, enquanto no alto de uma escada uma dama tombava envenenada. Antes que o sol nascesse novamente, o carrasco decepou as outras cabeças que haviam ousado pensar contra o Rei.

– Senhor, disse a Intransponível depois de recolher sua carga – já esperei mais do que devia. Mande selar o seu cavalo. E partamos.

– Esperou, é certo. Mas foi bem recompensada – respondeu o Rei. – Mandarei selar o meu cavalo, como me pede. E partiremos. Porém não para seguir o seu caminho. Acabei de declarar guerra aos países do Leste. E preciso da sua presença ao meu lado, nos campos de batalha.

A Morte sabia, por antiga experiência, o quanto podia ceifar nesses campos. Sem iscutir, emparelhou o seu cavalo com o do Rei, e começou a longa marcha. À frente, muito trabalho a esperava.

Não era trabalho para um dia. Nem para dois. Dias e dias se passaram. Meses. Anos. Em que a Sombria parecia não ter descanso, cortando, quebrando, arrancando. E colhendo. Colhendo. Colhendo.

E porque ela colhia tanto, chegou um momento em que a guerra não tinha mais como prosseguir. E acabou.

À frente do exército dizimado, o Rei e a Morte regressaram ao castelo. E na sala, agora desguarnecida de seus cavaleiros, o Rei assinou o tratado de paz.

Molhada ainda a tinta, já a Insaciável se adiantava, lembrando ao Rei que uma outra viagem o aguardava.

– Irei sim, minha amiga – respondeu ele com voa  gasta de tanto gritar ordens, – Mas amanhã. É tarde agora. E estou tão cansado. Deixe-me dormir esta noite na minha cama.

E porque a Morte hesitava: – Seja generosa comigo que já lhe dei tanto – pediu.

Uma noite, pensou a Invencível, não faria diferença. E ela também merecia um pouco de descanso. Como na noite de sua chegada, agora tão distante, recolheu-se.

Silêncio no castelo. Só sonhos percorriam os corredores. Mas no seu quarto, o Rei estava desperto. A hora havia chegado. Levantou-se, envolveu-se num manto, agarrou o castiçal com a vela acesa e, abrindo a pequena porta encoberta por uma tapeçaria, meteu-se pela passagem secreta cuidando de não fazer qualquer ruído.

Desceu degraus, seguiu sobre o piso escorregadio entre paredes estreitas, desceu uma longa escada, avançou por uma espécie de interminável corredor, desceu outros degraus. E afinal, cabeça baixa para evitar as teias de aranha, puxou uma argola de ferro e abriu a porta. Havia chegado às cavalariças.

A vela apagou-se num sopro de vento. Tateando, pegou uma sela, arreios, e com gestos rápidos encilhou o cavalo. Montou de um salto. Cravou as esporas, soltou as rédeas. E ei-lo lá fora, galopando na noite, afastando-se do castelo.

Galopava o cavalo, As nuvens abriram-se por um instante, a luz da Lua mordeu o pescoço do animal. Só então o Rei viu que o cavalo era mais negro que a escuridão. E que seus cascos incandescentes queimavam a grama ao passar, desfazendo-se as pedras em centelhas.

Marina Colasanti

(23 histórias de um viajante)

 

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