A PANDORGA DOS SONHOS

  • Essa é uma história autoral de Anete Curte Ferraz !

Sensações de liberdade criativa brotam das lembranças de minha infância. Morava, não ao lado ou em frente, mas dentro de uma fábrica de cerâmicas. Meus pensamentos corriam livres, se embrenhavam entre tijolos, manilhas, montanhas de areia, telhas e cerâmicas. Ideias borbulhantes se fantasiavam de brincadeiras concretas. Estradas subiam ladeiras margeando precipícios de areia. Argila, tijolos e telhas viravam porto seguro para o faz de conta. Sem crianças vizinhas para brincar, personagens amigas imaginárias travavam diálogos engraçados e bordavam de magia minha realidade solitária. O mundo adulto que me cercava, mãe, pai, irmã dezesseis anos mais velha, não era um bom interlocutor. Eu criava, então, uma realidade paralela construída por meio de barro e imaginação. Um dia, no entanto, o pai fez algo incomum. Dedicou-se a uma atividade caseira e prazerosa. As mãos calejadas exibiam habilidades singulares. Varetas amarradas em forma de cruz recebiam o multicolorido papel de seda. Fios e papeizinhos cortados e recortados com esmero para confeccionar uma pandorga. Uma tarde de carinho e dedicação. Eu observava a cena com atenção e curiosidade. O coração, surpreso, queria sair pela boca. Olhava maravilhada para aquele objeto desconhecido que roubava as cores do mundo. Tantas bandeirolas, para que serviriam? Ah! E o fio longo que parecia de pescaria. O pai, homem de longos silêncios, deu vida às suas mãos para que elas expressassem os sentimentos guardados em seu coração.
– Pronto, está pronta. Venha!
Meu pai e eu saímos à procura do vento. Puxõezinhos mágicos balançavam o fio que convidava a colorida pandorga a subir aos céus com graça e leveza. Lá de cima, a malabarista tentava esquadrinhar o infinito azul, mas o vento soprador de sonhos havia se escondido naquela tarde. Repetidas quedas desapontavam a dupla em terra firme. Meu pai fez novas tentativas. Eu esperava com ansiedade minha vez de soltar a pandorga. Mas, meu pai cansou-se dos repetidos fracassos.
– Outro dia você tenta empinar – pandorgas não voam em dia de calmaria.
– Outro dia…outro dia!
O vento não voltou a soprar forte nas semanas seguintes. Ou terão sido meses? O fato é que a brincadeira desejosa de aventuras, ao lado de um adulto, nunca mais foi repetida. Hoje, tantos anos depois, uma brisa lampeira surge para soprar pensamentos e esperanças. Vento com leveza, mas com força suficiente para empinar a pandorga sonhada e não vivida. E aquela menina construída de barro e imaginação descobre que sempre é tempo de empinar as pandorgas de sonhos.

Fim.

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