A sacola de couro

Há muitos anos atrás, na terra da Coréia, vivia um filho único com seus ricos pais. O menino adorava ouvir estórias e antigos contos de fada. Cada noite, ao ir se deitar vinha um velho servo lhe contar mais uma lenda excitante. Muitas das estórias tratavam de terríveis dragões e tigres, outras de feiticeiras más ou de espíritos de raposas ferozes, mas outros falavam de boas fadas ou de moças lindas e valentes heróis.

Pendurada num cabide atrás da porta do quarto de dormir do rapaz havia uma sacola de couro amarrada no “pescoço” por uma cordinha bem esticadinha. Logo ao acabar de contar as estórias, os espíritos dos contos tinham que ir para a sacola e ali permanecer. Só poderiam sair de lá quando o rapaz recontasse o mesmo conto para outra pessoa.

Infelizmente o jovem era muito egoísta, e os espíritos estavam em maus lençóis. De dia, quando o rapaz brincava com as crianças de outras famílias, elas lhe pediam:

– Sabemos que seus empregados contam contos maravilhosos para você. Por favor, conte um para nós.

Mas o menino não queria. Guardava os contos só para si mesmo.

Com o decorrer do tempo, a sacola, pendurada no cabide atrás da porta, ficou cada vez mais cheia. Os espíritos dos contos, fossem bons ou maus, eram empurrados para dentro até quase não poderem mais se mexer. E começaram a ficar bravos e entediados também.

O menino foi ficando moço. Só restou para ele um contador de estórias, um velho e fiel servo, que conhecia todas as antigas estórias do país. Embora o moço já fosse quase homem, o empregado continuava ainda lhe contando uma nova estória cada noite. Assim, mais novos espíritos de contos tinham que ser enfiados dentro da sacola de couro, pendurada no cabide atrás da porta do quarto de dormir.

– Não cabe mais! Já estamos completamente amassados – gritavam os espíritos na sacola. Mas de nada adiantava gritarem. Lá se ia mais um espírito de conto para dentro daquela escuridão superlotada.

Os amigos ainda pediam ao rapaz para lhes contar algumas das muitas estórias que conhecia, mas ele continuava se recusando.

O jovem tornou-se homem. Seus pais tinham morrido, mas um bom tio tomou conta dos negócios do rapaz, que agora era rico. O tio não teve nenhuma dificuldade em lhe arranjar um bom casamento. Todos os preparativos foram feitos. Chegou finalmente o dia em que o moço seria levado em procissão até a casa da noiva. O velho servo, aquele contador de estórias que ainda estava lá, ao entrar no quarto do rapaz, ouviu umas vozes muito bravas. “Será que são ladrões?”, se perguntou. Foi se adiantando mais um pouquinho, bem devagarinho e sem fazer barulho, para ouvir melhor.

– Vocês sabem que ele vai se casar hoje – dizia uma voz.

– Sim – dizia outra. Está se vestindo com roupas muito chiques e indo para uma bela festa, enquanto nós estamos aqui abandonados nesta sacola abarrotada como sempre.

– Isto não está certo. Fomos longe demais -latiu a voz inconfundível de um espírito de raposa. Vamos matar este jovem egoísta e aí, quando ele estiver morto, poderemos ser libertados desta sacola.

– Boa ideia – concordaram muitos outros espíritos descontentes.

O velho empregado, então, abriu com cuidado a porta e pegou a sacola pendurada no cabide atrás da porta. Ficou surpreso ao sentir como ela se mexia, conforme os espíritos levantavam punhos e falavam com vozes bem bravas. Os espíritos das boas fadas; das lindas donzelas e dos valentes heróis não diziam nada. Tinham medo dos outros espíritos.

Felizmente para o jovem egoísta, o velho empregado lhe queria muito bem. Ficou quietinho parado, enquanto os espíritos continuavam tramando suas ciladas.

– Há um longo caminho a percorrer para se chegar a cavalo até a casa da noiva – disse o espírito do tigre. O rapaz vai sentir muito calor e sede. O espírito da água é amigo meu, vou pedir-lhe que esconda, num poço que há perto da estrada, um cantil que estará flutuando por cima dessa água fresca. O jovem vai querer beber e então o espírito da água pode fazer com que adoeça e morra sufocado.

– Ótimo – ria o espírito da raposa. Se por acaso isso falhar, vou pedir à minha amiga, a fada dos morangos, para sentar-se num campo perto da estrada. Se o rapaz não tiver bebido da água do poço, sem dúvida vai querer comer alguns morangos bem doces e maduros. A minha amiga vai aproveitar para pular junto com os morangos na sua garganta, e assim sufocá-lo.

A sacola de couro ia balançando, conforme os espíritos aplaudiam e gritavam sua aprovação. Então, ouviu-se a voz estridente de um espírito de morcego:

– Conheço alguma coisa a respeito de casamentos, e sei que quando o noivo apeia do cavalo ao chegar à casa da sua noiva, costuma-se colocar um saco cheio de folhas de milho debaixo de seus pés, para que seja agradável descer de sua montaria. Vou procurar uma brasa incandescente e colocá-la no meio das folhas, para que o rapaz se queime.

– Muito bom – aprovaram as outras vozes.

Depois, veio a vez da serpente assobiar a sua contribuição:

– Vou pedir a um primo meu para esconder-se debaixo da passadeira em frente da cama dos noivos ­ disse ela. Assim, se todas as outras armadilhas não derem certo e o noivo conseguir se unir à sua noiva, nessa hora meu pé vai deslizar debaixo da passadeira e picar o pé do noivo. E todos nossos problemas serão resolvidos.

– Ótimo, ótimo! – riam todas as vozes dos espíritos dos contos.

Dali para frente, ficou tudo em silêncio e a sacola se aquietou.

Mas o velho empregado ficou horrorizado com o que acabara de ouvir. Gostava muito de seu jovem patrão e não lhe desejava mal nenhum. Mas, por outro lado, se dava conta de que, se fosse contar a estória que acabara de ouvir dos espíritos dos contos que viviam dentro da sacola de couro pendurada no cabide atrás da porta, ninguém iria acreditar no que contara. Iriam pensar que tinha perdido a cabeça.

“Vou ter que salvar o meu patrão, mas terá que ser pela astúcia”, pensou.

Foi encontrar-se com o tio do rapaz, pedindo-lhe que lhe permitisse conduzir o cavalo do rapaz na procissão que levaria o noivo até a casa da noiva.

– Claro que não – foi a resposta do tio. Você está muito velho, e a caminhada seria longa demais para você.

– Por favor – insistiu o velho homem – por favor! Cuidei durante tanto tempo de meu patrão, que gostaria poder levá-lo até o seu casamento. Depois me retirarei em paz.

– Está bom – suspirou o tio. Você vai conduzir o cavalo.

A procissão do casamento se pôs em marcha, com o velho segurando o cabresto do cavalo do jovem patrão. Este tinha uma esplêndida sela toda cheia de chocalhos. As próprias roupas do noivo eram magníficas. Vários servos o acompanhavam a pé. E, bem no fim da procissão, vinha o tio, também montado num lindo cavalo e guiado por seu valete.

Outros servos carregavam um lindo palanquim, que iria servir para a noiva na sua viagem de volta.

O sol estava bastante quente e, depois de terem viajado um bom caminho, o noivo ficou com sede. Na mesma hora, percebeu na sua frente um poço com um cantil flutuando na superfície da água, bem a seu alcance.

– Pegue um pouco de água para mim – ordenou ao seu servo.

O velho segurou com força no bridão do cavalo para afastá-lo de lá o mais depressa possível.

– Agora não, meu jovem patrão, não é bom parar para beber. Como você sabe, beber quando o sol está brilhando com muita força faz suar e isso estragaria suas belas vestas de casamento.

Os outros servos ficaram espantados ao ver o velho ousar desafiar seu jovem patrão dessa maneira, mas lá se foi a procissão continuando o caminho. Mais para frente, chegaram a um campo cheio de morangos.

– Ainda estou com sede e também com fome. Pega alguns morangos para mim – falou ao seu servo.

– Não, patrão, não vai me dizer que está realmente querendo morangos agora -falou o velho, apressando-se em continuar o caminho. Você só vai conseguir sujar suas belas vestes com o suco dos morangos. Você sabe que sua querida e pranteada mãe nunca teria permitido que comesse enquanto estivesse vestindo as suas melhores roupas.

Os outros servos não acreditavam no que ouviam. Mandaram um recado para o tio, dizendo que o velho maluco do servo recusava-se a obedecer seu mestre. O tio logo se apressou em se adiantar até lá.

– O que é que está acontecendo? – perguntou. É verdade que este velho servo aqui recusou-se a dar água de beber e morangos de comer a seu patrão?

– Sim, sim – respondeu o noivo. Mas não precisa criar caso por isso. É um velho e fiel servo.

– Não vai haver confusão agora – espumou o tio. Mas depois do casamento ele receberá umas belas pauladas.

Desta maneira, o velho empregado conseguiu salvar seu patrão das duas primeiras armadilhas montadas pelos espíritos dos contos, e a procissão chegou em boa forma até a casa da noiva. Tinha sido preparada uma grande festa e uma barraca levantada para abrigar os convidados. No pátio tinha sido colocado um saco de espigas de arroz para o noivo apear do cavalo. No momento em que o jovem apeava, o velho puxou o saco e o levou embora rapidamente.

-Mas você endoidou, meu velho amigo? –perguntou o jovem, que perdeu pé e caiu.     .        .

De novo o tio ficou furioso e prometeu dupla porção de pauladas para o velho logo depois da cerimônia do casamento. Mas, o servo não disse nada. Tinha conseguido salvar seu patrão do terceiro azar.

Começou a cerimônia. Um galo e uma galinha, nas suas melhores vestes e amarrados a um copo de vinho, foram colocados numa mesa esculpida muito elegantemente. Perto da mesa havia um pano bordado com dragões, para trazer boa sorte. O noivo estava do lado leste da mesa. A noiva, com seu vestido bordado e ajudada por duas amas, entrou do lado oeste. A noiva e o noivo fizeram uma profunda reverência um para o outro, e a cerimônia continuou. Um gole de vinho foi tomado dos copos nos quais estavam amarrados o galo e a galinha, e assim completaram-se as formalidades.

Houve uma grande festança e muita conversa e reencontros entre os familiares. No fim, chegou a hora de o noivo se retirar para o quarto da noiva. Ali é que estaria a última tentativa dos espíritos de contos de matarem o jovem. O velho empregado foi seguindo a procissão que levava os noivos até a porta de seu aposento e, para grande espanto de todos, ele se adiantou, levantou a espada que tinha escondida por baixo de suas roupas, puxou a passadeira em frente da cama e cortou em pedaços uma cobra que ali tinha se escondido.

Nunca ninguém tinha visto tamanha confusão e emoção. Ao ver a cobra morta, o velho servo deu um suspiro de alívio. Tinham sido eliminadas todas as armadilhas contra seu patrão. Contou então a estória dos espíritos dentro da sacola de couro. O jovem acreditou no que ouviu e se arrependeu de seu egoísmo ao guardar estocados os espíritos dos contos por tanto tempo dentro da sacola.

– Daqui para frente, contarei as estórias para outras pessoas, essas estórias que me alegraram tanto.

No decorrer do tempo nasceram filhos do jovem casal. Cada noite o jovem pai se sentava para contar-lhes estórias. Eles achavam que tinham o melhor pai do mundo. Um a um, os espíritos dos contos foram resgatados e não se ouviu mais ninguém planejar novas armadilhas.

Quanto ao velho empregado, não recebeu as pauladas prometidas, mas viveu sua velhice num aposento confortável perto daquele das crianças.

Conto coreano

Por: Jette Bonaventure

Extraído de: O que conta o conto?

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