Adriane Zeni
Tédio à arapuca,
arma.
O mal, o dragão, a bruxa, o caos
a fecha.
Se lança às trevas,
a abre.
Apresentado a si mesmo,
enfrenta medos, traumas, desconhecido,
a quebra.
Transformada,
madeira, lenha de fogueira
esquenta,
alimenta,
inspira.
.
Começo com uma proposição. Imagine que o gráfico abaixo é um mapa. Pode ser o de uma cidade, cujo centro seria a casa do prefeito e ao entorno estariam as casas das pessoas mais influentes do lugar. Nelas morariam uma família de ferreiros, uma de professores, uma de padeiros, uma de comerciantes, uma de soldados, e um pastor, com esposa e filhos, sendo que cada uma das famílias agiria em interesse próprio. Caberia ao prefeito ordenar todos os interesses, visando o bem comum.

Ou esse esquema poderia ser uma representação esquemática dos planetas de um mapa astral.

Ou ainda a representação das funções da mente humana:

Ou as personagens de uma história:

E os sentimentos que representam:

Esse diagrama é tudo isso e esse é o tema do presente texto: as múltiplas leituras de algo que existe, intriga, porém não tem forma, é indizível, indescritível: os meandros da alma, ou da psique humana.
Se você já fez testes em empresa de RH, já percebeu uma padronização nas perguntas que tentam tabular aspectos de sua personalidade. Por incrível que pareça, eles se encaixariam perfeitamente no diagrama acima. São estruturadas a partir em uma teoria psicológica, BIG 5, construída durante o século vinte, que diz que a personalidade é uma combinação de 5 aspectos: abertura a experiências, conscienciosidade, extroversão, agradabilidade e neuroticismo – se juntarmos a ele a consciência e o inconsciente, teremos os 7 viajantes da jornada.
Em linhas gerais, um mapa natal é uma combinação única de signos, casas e planetas que mostra o desenho do céu no momento do nascimento e o relaciona aos movimentos dos astros no decorrer do tempo. Esse mapa mostra quem somos e que energias operam sobre nós. Um conto de fada é uma jornada de uma personagem central que percorre um caminho de aprendizagem, acompanhada de amigos e antagonistas que operam sobre ela.
Sim, tanto um conto de fada, como um mapa astral são a codificação dos aspectos da alma ou da psique, se preferir. “São as pessoas da pessoa, que são múltiplas na pessoa”, como dizem as pessoas da etnia Bambara.
Se você colocar todos os diagramas acima sobrepostos perceberá que cabe ao Sol personificado no herói colocar ordem na cidadela murada de nossa mente e fazer com que todos ajam de forma uníssona. Isso fica claro nas histórias de heróis: o grupo de personas em sua totalidade é a alma estilhaçada e o Sol aquele que precisa integrar todos os fragmentos – as personagens aliadas e as inimigas que aos poucos vão desaparecendo e magicamente doando suas habilidades ao herói dourado.
Funciona mais ou menos assim: era uma vez um protagonista com um grande problema material e outro, mais escondido, moral. Ele parte pra uma jornada, com caminho encontra companheiros e inimigos, os conhece, os reconhece e age sobre eles. Conforme somem são integrados ao herói. Creio que esse herói somos nós, reconhecendo as emoções e lhes dando o nome, para que assim possamos direcioná-las. É o eu consciente que vê um rato entrando na sala, que sente medo e nojo, mas ao mesmo tempo percebe que é filhote de pelo macio, sente ternura e dó; calcula a melhor forma de prendê-lo, decidindo se vai matá-lo ou soltá-lo num terreno próximo; usa a agilidade e a força e se livra do problema.
As personagens, portanto são aspectos, às vezes conflituosos de uma única totalidade, como se fossem submentes, ou mentes especializadas, de uma única pessoa. Às vezes são aliadas, às vezes vilãs.
Em algumas histórias essa distribuição das submentes nas personagens é muito clara. Em outras, nem tanto, mas se fazem presentes de outras formas, com mais de uma personagem com as mesmas características, ou apenas uma personagem que carrega vários aspectos. Vou propor a você que pegue uma história e tente reconhecer nas características das personagens as descrições que vou colocar a seguir. Sugiro “Caverna do Dragão”, como eu fiz, ou “Thundercats”, se tiver nascido na década de 1970. Lembro que esta distribuição em sete esferas é apenas uma das possibilidades infinitas. Nas histórias do Rei Arthur, de Cristo ou do Olimpo, são depuradas em doze, assim como no zodíaco.
Começo com o protagonista, o EU CONSCIENTE, o herói, um dos aspectos da alma: o ego em busca de sua essência, de uma totalidade. Ele é responsável por liderar e harmonizar todas as outras submentes, fazendo-as viajar em uma única direção. É responsável pela existência do grupo, seu sopro vital, por isso é jovem, inexperiente e belo e possui uma áurea dourada, um cabelo leonino. Sua busca é a busca do grupo, sua flexa aponta o caminho. É ele quem carrega a cruz da responsabilidade e tem a consciência dela. O arco da trama reflete o seu amadurecimento. O vilão, sua contraparte, representa seu grande medo, por isso é o seu coração, o reestabelecimento de sua coragem, que salva o grupo. Como é ele quem desloca-se, possui uma energia masculina, independente se é homem ou mulher. Só quando se integra ao grupo, adquire as habilidades necessárias para ver, encontrar e libertar a alma das camadas e mais camadas de roupas, pedras e lama que a acorrentam. O bom herói é líder e não chefe do grupo, escuta a todos, e chega a um consenso e, mas, principalmente, está a serviço de uma consciência maior, que o direciona.
Sigo com o EU TRABALHADOR, que a teoria do BIG 5, nomeia como conscienciosidade. Às vezes é o vilão da história – Thanos, da Marvel, ou as madrastas dos contos de fadas, por exemplo. Às vezes apenas aquele mais azedo e aterrador (do substantivo terra) do grupo de aliados, como é o caso de Eric, o cavaleiro da “Caverna do Dragão”. Esse aspecto sempre transparece conhecimento, preocupação e insegurança com os problemas futuros, por isso vê, planeja e age duramente, por bem ou por mal, sobre as dificuldades da vida: é Cronos que sacrifica o presente em prol do futuro, é o capricorniano traçando metas, o inabalável aquariano. Carrega um escudo, mesmo que metaforicamente, pois tem um instinto muito forte de autoproteção e leva o peso da tristeza, da culpa, da mágoa, do remorso. Tem cara de maldição, mas é fundamental para o final feliz da história, pois, quando vilão, lança o herói a aventura que o salvará – quem seria a Branca de Neve se sua madrasta, um dia, pois toda história tem um dia, não a tivesse jogado do castelo na floresta sombria, a fizesse aprender a sobreviver por si só e a tivesse colocado em um caixão de vidro para ser encontrada por um príncipe?
Se a personagem do parágrafo anterior tem caráter saturnino, o próximo expressa fé e confiança no futuro, é inspirado por Zeus. É entusiasmado, misericordioso e positivo, o EU ALEGRE. É a mente abstrata do grupo, o pisciano que conhece religião, filosofia e tradições. Pode ser representado por um mestre, um professor, um protetor que carrega um bastão, que dá o norte, um sagitariano que inspira rumo ao desconhecido. É a disposta e atlética Diana de “A caverna do dragão” em busca de dopamina. Enfim, é aquele que ajuda na expansão, dá presentes e sabedoria.
Agora relembre do personagem mais reativo da narrativa: o ariano, mente de vontade, que está sempre pronto a uma boa briga, o escorpião que encontra inimigos onde não existe, o EU COM ADVERSÁRIOS. É Bobby (“Caverna do Dragão”) que a age sem pensar destruindo todas as ameaças que vê pela frente. É o guerreiro testosterônico, viciado em adrenalina. É o fogo severo que, a força queima e destrói. É a enchente que sufoca e aniquila.
Já o EU COM ALIADOS, transparece uma energia feminina de concórdia, cooperação, empatia, aliança, compaixão e polidez. Não gosta de conflitos e deseja harmonia e conexão. Geralmente traz prazer, é bela aconchegante, pois de libra herdou o gosto pela arte e de touro o desejo pelas coisas boas da vida. Na “Caverna do Dragão” é a fofa Uni, uma unicórnio muito afetuosa que pensa com o coração. É a mente sentimento.
Em oposição à anterior, existe a inquieta mente concreta, o geminiano exploratório e comunicativo, o virginiano prático e seletivo, o EU COMUNICADOR, que está sempre aberto às experiências e desejando aprender algo novo. Pode ser representado por um mago, um mensageiro, um intermediário. É o nerd rapidinho e curioso da história, que se adapta quando é preciso. É Presto.
E, por fim, se temos Hanck como herói solar, precisamos de uma Sheila e sua energia lunar (“Caverna do Dragão”), representando o EU INCONSCIENTE, por isso é nebulosa e usa a capa da invisibilidade. Nas histórias é a segunda energia feminina e pode ser representada por um ser místico, mágico ou maternal. É água morna que abraça e nutre, mas ao mesmo tempo é mistério ligado à ancestralidade. É intuição. É cheiro de instinto.
São dois que buscam ser um:
o que sabe, mas se esconde
e o que já se esqueceu.
Entre eles, há a sombra,
que quando iluminada
é a cola do viveram felizes para sempre.
Para encerrar este texto preciso explorar três aspectos de “A caverna do Dragão”: Mestre dos Magos, Vingador e o próprio Dragão, Tiamat.
Mestre dos Magos representa muito mais que a mente abstrata, representa a totalidade da psiqué, pois tem acesso a todas as esferas. Cumpriu seu arco e chegou ao final de sua jornada, por isso é mestre. Seu papel é fazer com que seu filho, um herói que não conseguiu sair da sombra de seu dragão, o Vingador, tenha a redenção pelos jovens da trama.
Herói
que desce do abismo,
entra no tempo
com companheiros,
resgata a princesa
do dragão instinto da matéria,
e lhe dá luz.
O mestre mora em cada um de nós. Pode ser o self, a voz dos egos desencarnados, o sagrado anjo guardião ou algo que o valha. Se tudo der certo, durante a vida aprendemos a escutá-lo e com sua ajuda, temos como aliados todos os companheiros de jornada que leva ao felizes para sempre.
Em uma seção de contação, tanto quem conta, quanto quem ouve, acessa esses diferentes companheiros dentro de si mesmo. Visita essas polaridades, conversa com elas, as reconhece, lhes dá nomes, e volta ao centro, fortalecido. Explorando essas imagens das histórias, dos sonhos, ou que vêm a mente em vigília é possível colocar luz sobre os arquétipos que manipulam, delimitam, geram compulsões, angústia, ansiedades e fobias. Como uma história maravilhosa reflete a busca de sentido à vida, esse fortalecimento interno se reflete na busca externa. Homeopaticamente os envolvidos no processo vão aprendendo a ser herói da própria história, rumo ao mestre.
Esse texto foi estruturado principalmente a partir da palestra de Talles Menegon, “Cabala, astrologia e a jornada do herói”.
CAMPBELL, Joseph . O HEROI DE MIL FACES – 1ªED.(2007). Editora: Pensamento
VOGLER, CHRISTOPHER. JORNADA DO ESCRITOR: Estruturas míticas para escritores. NOVA FRONTEIRA, Rio de Janeiro, 2006 | 2a. Edição revista e ampliada
JUNG, Carl Gustav (ORG). O HOMEM E SEUS SIMBOLOS. Editora HarperCollins Brasil – 3ªED.(2016)