História recolhida em Guiné Bissal, contada por Ângelo Torres, em:
https://www.rtp.pt/play/p7330/e740597/quem-conta-um-conto
Aqui, recontada por Adriane Zeni
Como dizia o contador de quem ouvi esta história, os caçadores africanos sempre se apaixonam por lavadeiras de povoados distantes. Nosso herói, claro, sabia que era o melhor caçador de sua vila – o animal que ficasse sob sua mira, era um animal morto.
Porém, naquele dia, algo foi diferente. Longe de sua aldeia, ele retesou seu arco e perdeu o tiro porque ouviu no exato momento em que lançara a flexa, uma melodia. Era uma canção, entoada por uma mulher. Intrigado, cruzou o arco em seu peito e foi em busca da dona da voz. A encontrou do outro lado do rio, lavando roupas. Ela esfregava tecidos brancos e os erguia, aproveitando a luz do sol, como quem conferia a sua alvura. Quando ele viu tal cena, com o contorno da moça projetado no tecido, perdeu a razão e foi ao encontro dela.
Atravessou as águas flutuando e com o coração saltando pela boca, se ajoelhou frente a moça e a pediu em casamento. Ela pensou em falar não, e se assustou quando ouvir sair de si um “se meu pai concordar, aceito”.
Naquela noite, o caçador não dormiu. Na cama pensava em como fazer o pedido, em como se aproximaria do sogro, em como seria sua casa, seus filhos.
Levantou cedo, colocou sua melhor túnica e foi em direção à jovem lavadeira. Andou feito uma lança, atravessando matas e rios e só estreitou o passo quando já se encontrava no povoado indicado por ela. Apontaram-lhe a casa, à qual ele bateu à porta. Um homem de meia idade, de ombros largos, recebeu a proposta do caçador, à qual retribuiu com uma bofetada. E houve tantos tapas de mão aberta quanto pedidos repetidos, e não foram poucos.
Até que o homem se cansou da insistência e disse:
– Você não sabe que nesta vila há uma maldição? Que toda noiva é sequestrada por uma serpente? É isso que você quer para minha filha?
O caçador, respirando fundo, respondeu que era o maior caçador de toda África, não haveria animal com coragem suficiente para sequestrar-lhe a esposa e que ficasse tranquilo, pois guardaria a vida da moça com a própria vida. O sogro, gostando do que ouviu, assentiu.
Na data marcada, o noivo sua família e convidados de dirigiram a aldeia da noiva. Só que ao invés da festa imaginada, só encontraram lá, olhares de reprovação.
– Seu maldito, trouxe a desgraça a minha casa! – Essa foi a recepção dada pelo pai da jovem – A serpente sequestrou a minha filha.
Sem pensar duas vezes o caçador cruzou o arco em seu peito, pegou flexas e alforje, encontrou o rastro do bicho, falou a todos que só voltaria com sua esposa e começou sua jornada.
Como via que a serpente rastejava mais rápido que ele caminhava pelas marcas deixadas no solo e nas matas, cruzava as terras feito uma lança, com passos leves e velozes e cabeça erguida, sempre em frente, sempre em frente.
Uma pedra, vendo isso, resolveu ficar na frente do rapaz. A topada que ele deu, foi forte, arrancou-lhe uma unha, que voou pelos ares. Porém ele continuou, cabeça erguida, sempre em frente.
A pedra, não satisfeita, rolou na frente dele mais uma vez, e mais ele topou e outra unha girou pros ares. Dor, provavelmente sentiu, mas não disse nem ui nem ai, seguindo sempre em frente advertiu:
– Oh, pedra segue teu caminho que tenho o meu. Vou em busca de minha noiva, que foi sequestrada por uma serpente.
A pedra achou a atitude tão altiva, que resolveu seguir o rapaz. E pouco tempo depois os dois cruzaram por um chacal, que vendo perna do caçador, ficou com vontade de comê-la, mordeu-a. Porém o jovem continuou andando sem dizer ui ou ai, apesar do chacal, que ficou pendurado, arrastado. Como via-se mais lento:
– Oh, chacal segue teu caminho que tenho o meu. Vou em busca de minha noiva, que foi sequestrada por uma serpente.
O animal achou aquilo tão valente, que resolveu ir atrás do jovem e da pedra. Seguiram os três. Até que uma águia confundiu o caçador com um cabrito bicou uma, duas vezes ombro do moço, que sem dizer ui ou ai se cansou, parou e disse:
– Oh, águia segue teu caminho que tenho o meu. Vou em busca de minha noiva, que foi sequestrada por uma serpente.
O pássaro achou aquilo tão bonito que resolveu segui-lo. E foi, sobrevoando os três. E o grupo de quatro , foi atrás do rastro rápido, até que uma mosca:
– Zzzzz zzzzz zzzzzzzzzzz zzzz zzzzzzzzz zzzzzzzzz, Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz, – no ouvido do rapaz.
– Oh, mosca segue teu caminho que tenho o meu. Vou em busca de minha noiva, que foi sequestrada por uma serpente.
E ela achou oportuno entrar no grupo, que andou muito até encontrar um elefante, no meio do corredor deixado pela cobra. Como não era aquela massa de músculos que iria impedir o caçador, ele foi. Recebeu uma trombada, duas, três e saiu rodando pelos ares o mesmo número de vezes, sem dizer ai ou ui. Até que falou:
– Oh, elefante segue teu caminho que tenho o meu. Vou em busca de minha noiva, que foi sequestrada por uma serpente.
O bicho achou aquilo tão forte que resolveu seguir junto.
Não tardou e o grupo dos cinco, liderado pelo caçador chegou à boca de uma caverna que tinha uma rocha gigante como porta. A mosca se adiantou, entrou por um pequeno orifício e saiu de zunindo:
– A noiva do caçador está bem, triste, mas bem, assim como muitas outras moças e rapazes que são feitos prisioneiros. Ela me enviou um recado, disse que é para você desistir, pois a serpente não pode ser morta. A alma dela não está aqui, está em um ovo, que está dentro de uma pomba, que está dentro de um javali, que está dentro de um gnu, que é protegido por 13 enxames de abelhas selvagens assassinas, e que mora em uma caverna a oeste daqui, seguindo o caminho do Sol.
É claro que ao ouvir isso o caçador, seguido por seus companheiros, iniciou a nova jornada. Em poucos dias chegou à caverna e vigiou. Esperou, fingindo-se de morto, que os treze enxames de abelhas saíssem. Quando o gnu apareceu, se colocou sua frente e acertou seu coração com uma flexa. Antes do bicho cair ao chão teve o corpo estraçalhado, de dentro pra fora, por um javali. A cena inusitada amoleceu as mãos do rapaz, e sem pensar duas vezes o chacal gritou que era a vez dele, e, num bote matou, o javali. Pela boca daquele porco gigante, saiu uma pomba voando, que no alto do céu, foi morta pela águia. Enquanto a ave caía, botou um ovo que não se quebrou no impacto da queda, mas foi rachado pela pedra.
Nesse momento um vento muito estranho passou por ali e todos tiveram certeza que a serpente estava morta. Quando voltaram, o caçador ouviu a festa atrás da rocha, tentou retirá-la. Porém essa tarefa foi cumprida pelo elefante.
O felizes para sempre se deu ali, com o caçador e a lavadeira se tornando rei e rainha daquele lugar.
“Os caçadores africanos sempre se apaixonam por lavadeiras de povoados distantes”. Neste prólogo temos a chave que abre esta jornada comum a toda humanidade. É o herói em busca de sua outra porção, aquela que se esconde nos meandros de seu submundo, o tesouro inacessível. Esta história secular se repete em dezenas de filmes e livros. É também o roteiro de contos de fadas: uma estrutura universal humana, refletida no enredo de uma narrativa.
A presente narrativa revisitou meus ouvidos em maio de 2024, pela voz do contador Carlos Barbosa, justamente quando eu procurava uma história que exemplificasse o que abordei no texto “Os moradores da cidadela murada”. Talvez por sincronicidade, a história quis surgir.
Nela, temos um protagonista em busca de sua outra parte, que havia sido sequestrada por um monstro. Em seu caminho recebeu aqueles que o importunavam e os transformou em companheiros. Só foi quando ele conheceu todas as suas camadas que adquiriu habilidade para libertar a lavadeira de todas as camadas que a acorrentavam. Em um caminho de purificação e retirada de máscaras, o herói foi rumo ao amadurecimento da psiqué, à iniciação, à integração: processo comum a todos os seres humanos – de todas as épocas, de todos os lugares, independentemente de religião, cultura, tecnologia – que estejam dispostos a ouvir o chamado da natureza humana.
Particularmente sou fascinada pelos chamados dos contos arquetípicos. O personagem que se eleva da massa é aquele que consegue ouvir o chamado e atendê-lo, por isso se torna herói, mestre de si, exemplo sábio. Assim como nos contos, os chamados se manifestam na vida, uma duas, três vezes, em vozes diferentes. O meu, a você, leitor, faço agora: vem comigo pra jornada do jovem caçador que, aberto, seguiu o rastro, encontrou o caminho para dentro de si, conheceu as pessoas de seu vasto mundo interno, se despiu de quem era para encontrar o que é em sua feliz inteireza. Afinal,
“Conhece-te a ti mesmo
e conhecerás
os deuses e o universo.”
(Oráculo de Delfos)
Em uma primeira leitura de “A noiva do caçador” o que chama atenção é que o seu roteiro, apesar de ser uma história da tradição oral africana, poderia ser a sequência de uma série de tv onde o protagonista recebe uma mensagem codificada de uma princesa e precisa seguir até os confins do universo para salvá-la de uma inteligência maléfica alienígena que só sucumbiria perante a energia emanada por uma rocha, que foi cultuada por um povo ancestral. Poderia também ser a sequência de milhares de histórias que foram contadas e recontadas por diferentes povos, de diferentes épocas, de diferentes lugares. Não porque é o roteiro comum aos sonhos mais marcantes de todas as pessoas, mas porque esse é o roteiro do mergulho ao nosso interior.
Quando falamos de contos arquetípicos, abordamos temas que vêm antes dos aspectos culturais, abordamos padrões abstratos da psique coletiva, comum a todos os seres humanos, falamos de inconsciente pessoal, inconsciente coletivo e de arquétipos, um mundo que está além da consciência. E se está além da consciência, não opera com pensamento racional, com palavras, opera com imagens, com símbolos, a língua da alma.
E peço licença agora, para falar do ofício do contador de histórias tradicional, antes de continuar com “a noiva do caçador”.
Começo com uma proposição: a palavra IMAGEM é quase um anagrama para MAGIA. Não vou entrar no mérito da magia moderna, mas citar que o contador de história ancestral tinha, ou tem, um papel muito perto do sacerdócio. Ele é aquele que agarra pela mão o seu ouvinte e o leva para o lado de lá. É um condutor de almas, ligado à energia de hermes, mercúrio ou exu, justamente porque trabalha com símbolos.
A imagem da história passa pela fronteira consciente/inconsciente e consegue se relacionar com o que está lá: emoções, traumas, e arquétipos, que a nós são inacessíveis, mas operam na surdina e nos fazem sentir e agir movidos por uma sombra de nós mesmos. A imagem da história consegue iluminar o que está lá: quando pego a lanterna e foco nas personagens que atravancam o caminho do herói, tenho acesso às minhas emoções, que muitas vezes me sabotam e me afastam de meus objetivos. A princesa, a serpente e o ovo são personificação, imagens dos arquétipos que estão nas bases da estrutura psíquica de todo ser humano e os tornam heróis ou vilões da própria história e da história da humanidade. E a narrativa, assim, descreve o processo de ampliação de consciência, de integração desses arquétipos.
As imagens da história, portanto falam com o inconsciente, na língua do inconsciente; resolvem problema lá e isso reverbera no consciente e transformam a essência do ser humano. E é por isso que o contador de histórias é um captador de almas, afinal ele transforma imagens em palavras que, com anuência do ouvinte, lhe alimentam a alma, quando transformadas em imagens novamente.
Voltemos à história:
Ela se inicia com um caçador. Ele, o personagem principal, a representação do eu consciente, precisará passa por um caminho iniciático e para isso, claro, recebe um chamado de sua ânima, de sua parte feminina que mora no inconsciente. Ele a conquista e depois de conquistada é ela, a ânima que o ajudará a conquistar seu opressor.
A história começa o mais clássico de todos os chamados: a paixão – sentimento que surge justamente quando a alma está carente, quando se projeta o que falta em outra pessoa. A lavadeira, personificação da ânima, é aquela quem dará a possibilidade ao herói de ter filhos. Ela é a que purifica, retira marcas, é portadora da fertilidade, da criatividade, da genialidade, da inovação, das habilidades necessárias ao herói, que, sem ela, cairia em desânimo, perderia sua alma, em depressão.
O casamento exige algumas provas e a primeira delas é passar pelo sogro, o grande sensor interno, responsável pela recusa ao chamado, aquele que mostra os riscos e encoraja ao caçador a procrastinar. Ele diz: não venha, fica aí em sua zona de conforto, levando sua vida como sempre levou, dia após dia, se você vier, conhecerá seu lado mais demoníaco, então fica aí, não corra o risco. Porém, o herói, em seu primeiro ato de coragem, se mantém convicto, passa esta primeira barreira, e tem a noiva sequestrada pela serpente, mostro que personifica a sombra, o outro obscuro que vive em nós.
Mesmo como mundo destruído, o jovem, num segundo ato de coragem, decide continuar sua jornada. Ele irá matar a serpente e libertar a amada. Para isso precisará, primeiro, encontrar o rastro, reconhecer que o monstro existe e depois, no caminho, conhecer seus outros eus que se escondem e agem alheios à sua vontade, tentando pará-lo ou desvirtuá-lo, e trazê-los para seu time. A pedra, o chacal, a águia, a mosca e o elefante, lideradas pelo caçador, passam a seguir pelo mesmo caminho, com um único objetivo. Ele agora é líder de si mesmo, senhor de seu lado animal, conhece suas emoções, seus instintos e seus impulsos, habitantes de seu inconsciente, e os faz agir a seu favor.
Quando chega ao covil do monstro, recebe de lá, a ajuda de sua ânima, que lhe mostra o caminho da salvação. Ela está acorrentada à sombra, no subterrâneo do inconsciente, sendo minada por todos os aspectos emocionais obscuros, traumas ou as recordações encapsuladas do herói, mas mesmo assim ensina, pelo zunido da mosca, pela voz da intuição, a agir com astúcia e matar o que lhe oprime e pode transformá-lo em vilão de si mesmo.
Como sua jornada não terminou ao encontrar a amada, o caçador precisará, ainda passar por mais uma prova. Ele precisará encontrar sua essência (self), que se esconde atrás de muitas peles e libertá-la.
Já no início do texto o jovem caçador mostra a sua primeira persona: a de grande caçador. O caminho de autoconhecimento exige que todas essas máscaras, todas essas peles sejam retiradas, exige que o QUEM SOU dê lugar para o O QUE SOU. Esse é o caminho do grande casamento e do final feliz.
Na boca da caverna e soube esperar e se abaixar perante as abelhas assassinas. Deu o tempo necessário ao tempo e demonstrou humildade, duas virtudes da sabedoria. Agiu quando foi preciso, teve coragem para o enfrentamento e fé em seus companheiros. Assim passou por todas as suas camadas, chegando a sua essência. Na jornada, ele não só encontrou a amada, como se tornou senhor, ao lado dela, de um novo reino. A sua consciência se renovou, ganhou novos territórios, teve uma nova zona iluminada. Toda a terra se tornou fértil, crianças nasceriam.
Concluo este texto reafirmando que os contos de fadas são um espelho que refletem a jornada espiritual da alma; eles são uma metáfora para um acontecimento psíquico, onde o ego, o herói, busca sua essência, sua totalidade, que está aprisionada sob camadas e mais camadas de pedras, lama e roupas. E aí se esconde a magia do contador de histórias: as imagens das narrativas que ele conta conversam com o inconsciente daqueles que o ouvem e de uma forma prazerosa fazem o chamado para a ampliação da consciência, mostram, de uma forma simbólica, como se faz isso e fortalecem o tecido psíquico para a trama da vida.
JUNG, Carl Gustav (ORG). O HOMEM E SEUS SIMBOLOS. Editora HarperCollins Brasil – 3ªED.(2016)