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 O CHAMADO, A RECUSA E A JORNADA

São três irmãos, irmãs, princesas,

 três chamados, duas recusas, um aceite,

duas tentativas, um acerto:

roda que precisa ser quebrada, reconstruída, religada.

“Por que, nas histórias, são sempre três?”

Sempre escuto esta pergunta e sempre suspiro antes de responder. A resposta é simples, única, e múltipla ao mesmo tempo. Pode ser física, metafísica, a proverbial “errando é que se aprende”, ou a metafórica imagem de uma roda quebrada. A chave desse enigma é que as três personagens ou acontecimentos de uma narrativa são símbolos de uma alma em uma jornada de amadurecimento, de passagem de uma situação a outra mais elevada, da busca por algo material, mas, principalmente, de algo mais sublime, mais sagrado.  

O conto abaixo é uma destas histórias. Vem do Tibet, mas poderia ter vindo de qualquer região ou época, pois trata da alma humana.

Já explorei a ideia do “três” sob outras perspectivas. Aqui, lanço mais mais uma possibilidade. Coloquei mais abaixo o que ressoa em mim, em meu caminho, lhe fazendo um convite: leia esta história, converse com ela e depois comigo. Minha intenção é iluminar seu caminho, que claro, é só seu.

O QUADRO DE PANO
– Conto Tibetano
 Havia uma vez, uma região árida ao pé das montanhas, uma pobre viúva que tinha três filhos. O maior não prestava para grande coisa, e tampouco o segundo. O caçula é que era filho carinhoso e trabalhador, que sempre procurava ajudar a mãe no que podia. A mãe ficava tecendo o dia todo, fazendo brotar de seus dedos flores maravilhosas, pássaros e bichos de todo tipo; levava os seus tecidos prontos para a feira de uma cidade vizinha, recebendo em troca dinheiro suficiente para comprar comida para ela e para os filhos.

O caçula costumava ir catar lenha numa floresta próxima, enquanto os outros dois irmãos se espreguiçavam ao sol, esperando que a mãe providenciasse comida.

Um dia, a mãe acabou de vender seus brocados um pouco mais cedo que de costume e foi, então dar uma volta pela feira, procurando um vendedor que oferecesse arroz mais barato. De repente, seus olhos pousaram numa linda tela pendurada numa loja. Aproximou-se para ver melhor. Era um quadro reproduzindo uma montanha parecida com a que havia atrás de sua aldeia, só que perto dela, em vez de cabanas pobres, havia um grupo de lindas casas limpinhas. Entre elas, a mais bonita era uma casa de andares, situada no meio de um jardim, atravessado por um riacho prateado que formava um pequeno lago no qual se agitavam peixinhos vermelhos. Aves de galinheiro ciscavam aqui e acolá, e belas ovelhas brancas pastavam nas ladeiras da montanha; campos de milho dourado se estendiam a perder de vista. Culminando essa tela idílica, havia no topo da montanha um grande sol de fogo.

A mãe ficou pasma com a beleza do quadro, e não se cansava de olhá-lo. Sem hesitar um minuto, tirou todo o dinheiro que tinha no bolso e que acabara de receber pelos próprios tecidos, e comprou o quadro. Só lhe sobraram algumas moedinhas para comprar um pouco de arroz para levar para casa. “Só uma vez”, pensava, “não será tão terrível. Na próxima vez comparei alguma coisa melhor para meus filhos.” No caminho, parava de vez em quando para desenrolar o quadro e admirá-lo. Como as casas brilhavam! Como o riacho cintilava! Contava quantas galinhas havia, quantos patos, e olhava para a pequena horta com seus belos legumes, tendo até a impressão de que podia sentir o perfume das flores que embelezavam o jardim. Nunca tinha se sentido tão feliz em toda a sua vida.

Em casa, a mãe pendurou o quadro perto da porta. Não conseguia tirar os olhos de lá. Os dois filhos maiores resmungaram e acharam ridículo gastar tanto dinheiro só para comprar um quadro, mas o caçula declarou:

– Gostaria que você tivesse uma casa parecida com a desse quadro, mamãe, com um jardim igualzinho. Se eu fosse você, teceria um quadro de pano usando este aqui como modelo. Enquanto você estiver tecendo a casa, as flores, o riacho e as galinhas, você terá a impressão de já ser dona de tudo isso.

– Não fique pondo essas ideias na cabeça da mãe – falou o filho mais velho bocejando. Se ela começar a ter por prazer, onde é que vamos encontrar dinheiro para viver?

– É claro – opinou o segundo filho. Se a mãe quer viver como uma grande dama, que espere pela outra vida. Talvez seja melhor do que esta!

No entanto, a ideia do filho caçula a seduzia.

– Não temam, meus filhos, que eu vá prejudicá-los – ela falou, para acalmá-los. Vou tecer à noite e de manhãzinha para meu prazer, e o resto do dia, para alimentá-los. Até agora alimentei vocês e vou continuar a fazê-lo.

Então ela comprou os fios mais lindos e se pôs a tecer.

A mãe passou um longo ano sentada tecendo. De noite, acendia uma tocha, cuja fumaça provocava lágrimas em seus olhos. Uma a uma, as gotas cristalinas caíam sobre o pano que estava tecendo e ela as ia incorporando ao quadro. Foi assim que teceu o lago e o riacho, com suas lágrimas.

No segundo ano, os pobres olhos da mãe estavam tão irritados, que até sangravam. E eram lágrimas vermelhas que caíam sobre o brocado que ela tecia. A mãe as ia incorporando ao quadro, tecendo flores vermelhas e o sol iluminava o céu.

No terceiro ano, o quadro estava terminado. Continha tudo o que estava no modelo: uma região cheia de verduras ao pé de uma alta montanha, casinhas que pareciam de prata, campos de milho dourado, jardins com legumes, árvores frutíferas, arbustos floridos e, à beira da aldeia, no lugar da pobre cabana da mãe, havia uma grande construção, com colunas vermelhas, portas amarelas e telhado azul. Atrás da casa, nas ladeiras verdes da montanha, pastavam ovelhas, búfalos e vacas; pintinhos amarelos e patinhos brincavam na grama, e pássaros cruzavam o céu em vôo rápido. Em primeiro plano, havia um jardim cheio de árvores e flores brilhantes e, no centro, um laguinho com peixinhos vermelhos; um riacho prateado atravessava os campos de arroz. Atrás da aldeia havia campos de milho dourado e, bem acima, um sol de cobre que brilhava num céu azul.

A mãe enxugou os olhos avermelhados e exibiu um sorriso de satisfação:

– Venham ver como está bonito, meus filhos!

Os três filhos aproximaram-se e deram um grito de admiração.

– Quanto dinheiro dariam por isso, se você o vendesse? – perguntou o filho mais velho.

– Por uma coisa assim, você poderá ganhar uma bela soma – confirmou o segundo filho.

Mas o caçula declarou:

– A nossa mãe construiu uma casa de seda para nós. Vamos contemplá-la e vivermos nela em pensamento.

– Teci este quadro para meu prazer e não quero vendê-lo – disse a mãe. Mas, aqui na penumbra não se enxerga muito bem tudo o que há nele. Vamos levá-lo para fora, para a luz do dia.

A mãe pendurou o quadro fora da casa e todas as cores ficaram mais intensas. Lá, à luz do dia, é que se podia ver realmente o quanto era bonito o quadro. Os vizinhos vieram admirá-lo e cada um cumprimentava a mãe, que sorria de felicidade.

De repente, ela sentiu o rosto a carícia de uma brisa leve, o no de seda balançou, um vento mais forte o sacudiu como um tapete do qual se tira o pó e, por fim, ele foi arrancado da porta onde estava pendurando. Num instante, o quadro saiu voando pelos ares.

A mãe deu um grito e desmaiou. Os vizinhos saíram em todas as direções procurando o quadro de pano, os filhos procuraram por toda a redondeza, mas ninguém encontrou o quadro de seda da mãe.

Depois do sumiço, a mãe começou a vagar com uma alma penada. O caçula tentava consolá-la como podia, preparando sopas de gengibre, mas a mãe ia definhando rapidamente.

Depois de algum tempo, a mãe falou para o filho mais velho:

– Filho, se você quer que eu viva, vá procurar o meu quadro de pano e o traga de volta. Sem ele, é como se eu tivesse perdido uma parte de minha vida.

O filho calçou suas sandálias e saiu em direção ao leste. Andou meses a fio, até chegar a um desfiladeiro, onde havia uma casinha de pedra. Na frente da casa havia um cavalo esticando o pescoço em direção a uns morangos. “Por que o cavalo não come os morangos?” perguntou o rapaz a si próprio. “Por que será que fica assim esticando o pescoço de boca aberta?” Ao se aproximar, constatou que o cavalo era de pedra. Ficou muito surpreso com isso. Enquanto estava lá contemplando o cavalo, estarrecido, uma velha sorridente saiu da casa de pedra.

– O que você está procurando, meu filho? – ela perguntou, cordialmente.

– Estou procurando um quadro de pano que nossa mãe teceu, respondeu o filho mais velho. Nele minha mãe tinha reproduzido uma paisagem com uma casa, um riacho, um jardim, aves, o sol e as flores. Para ela fazer esse quadro, não comemos bem durante anos, Mal ela acabou de tecê-lo, o vento o levou, Deus sabe para onde. Mamãe me pediu para procurá-lo. Por acaso não sabe onde ele está?

– Sim, sei – falou a velha balançando a cabeça. Foram as fadas da Montanha Ensolarada que pegaram emprestado o quadro. Querem usá-lo como modelo para tecerem um brocado igualmente bonito.

– Fico feliz em saber para onde dirigir meus passos para reencontrá-lo – disse o irmão mais velho, com um suspiro de alívio. A senhora poderia me indicar o caminho da Montanha Ensolarada? Quero ir logo lá, só assim vou ficar tranquilo.

– É fácil dizer, mas difícil de realizar – disse a velha com um riso silencioso. Só se pode chegar lá montado neste cavalo aqui.

– Mas, esse cavalo é de pedra! – observou o irmão mais velho.

– Pouco importa – disse a velha. O cavalo voltará à vida assim que você implantar seus dentes nas gengivas dele, para que ele possa comer os morangos. Se você quiser, eu ajudo arrancar seus dentes com uma pedra.

O filho mais velho olhou para a velha espantado. Seus joelhos tremiam.

– E isto ainda não é nada – continuou a velha, parecendo não ter percebido o espanto do rapaz. O cavalo fará você atravessar as chamas de um vulcão e o gelo de uma geleira, e só depois, além do mar, você vai encontrar a Montanha Ensolarada e as fadas. Agora, se durante o percurso você suspirar uma vez apenas, as chamas vão reduzi-lo a cinzas, os pedaços de gelo da geleira vão quebrá-lo todo e as ondas do mar vão afogá-lo.

O filho mais velho recuou dois passos, olhando para o caminho por onde tinha vindo. A velha sorriu:

– Se você não estiver disposto, não se esforce! Melhor voltar para casa. Eu vou lhe dar uma caixinha cheia de moedas de ouro para sua caminhada.

– A senhora vai me dar, sem mais nem menos, estas moedas, sem nada em troca? – perguntou o irmão mais velho incrédulo, mas seduzido.

– Sim, assim por nada. Ou, se você quiser, para que você coma e não sinta fome – respondeu a estranha velhinha.

– De fato, é verdade, prefiro voltar para casa – disse o irmão mais velho, pegando as moedas de ouro e sumindo pelo mesmo caminho pelo qual tinha vindo. Ao chegar numa encruzilhada, falou para si mesmo: “Para uma pessoa apenas, estas moedas são suficientes, mas para quatro são poucas. Melhor eu ir à cidade do que voltar para casa. Vou viver como um senhor!” E tomou o caminho que levava à cidade.

Vendo, com o tempo, que o filho mais velho não voltava, um dia a mãe falou para o segundo:

– Seu irmão está viajando, Deus sabe onde. Sem dúvida se esqueceu de nós. Vá, meu filho, vá ver se encontra meu belo quadro de pano.

O filho do meio calçou suas sandálias e se pôs a caminho. Andou um dia, uma semana, um mês e chegou à casinha de pedra. Viu o cavalo de pedra esticando o pescoço em direção aos morangos. A velha apareceu na porta, perguntando:

– Que bons ventos o trazem por aqui, meu filho?

– Estou à procura de um quadro de pano que minha mãe teceu. O vento o leu – respondeu o segundo filho.

– Seu irmão mais velho já passou por aqui – disse a velha com um suspiro, mas teve medo de ir reconquistar o quadro de pano, porque teria que atravessar chamas e geleiras montado naquele cavalo.

– Ma é um cavalo de pedra – estranhou o filho do meio.

– Se você deixar eu arrancar seus dentes com uma pedra para implantá-los no cavalo, ele reviverá, comerá os morangos e poderá levá-lo até as fadas da Montanha Ensolarada, que irão lhe devolver o quadro.

– Era só o que faltava, deixar extrair meus dentes – disse o irmão do meio alarmado. Prefiro voltar para casa.

– Neste caso, vou lhe dar um cofrinho cheio de moedas de ouro. Seu irmão também as recebeu.

“Então foi por isso que meu irmão não voltou para casa”, pensou o irmão do meio. “E fez bem. Aproveitou melhor seu dinheiro em outro lugar.” Então o irmão do meio pegou a caixinha com as moedas de outro que lhe oferecia a velha e agradeceu educadamente, pensando em sumir o mais rapidamente possível de lá e ir direto para a cidade. “Agora vou aproveitar a vida! Por que iria repartir com os outros?”

Ao cabo de mais um mês, a mãe chamou o caçula e lhe disse:

– Filho, sinto-me fraca como uma mosca e, se não encontrar o meu quadro, creio que não vou resistir por muito tempo mais. Meus dois filhos maiores devem estar passeando, quem sabe onde? Sem dúvida se esqueceram de nós. Em você, sempre tive confiança. Vá, pois, à procura de meu quadro.

O filho caçula calçou suas sandálias e partiu. Chegou ao desfiladeiro em frente da casinha de pedra e do cavalo de pedra com o pescoço esticado para os morangos. Na porta da casa se encontrava a velha que parecia esperar por ele. Ela o recebeu dizendo:

– O caminho que leva para o quadro de pano é difícil. Os seus irmãos maiores preferiram receber de mim uma caixinha com moedas de ouro e ir gastá-las na cidade.

– Eu não tenho nada – disse o caçula – e não preciso de ouro. As moedas de ouro não irão devolver a saúde a minha mãe. Mas, que devo fazer para recuperar  o quadro de brocado?

A velha explicou ao caçula o caminho que atravessava as chamas e o gelo. Também lhe disse que poderia reanimar o cavalo se arrancasse os próprios dentes e os implantasse na boca do cavalo. Mal acabara de lhe dar esta explicação, o rapaz já tinha pegado uma pedra, quebrado seus dentes e implantado na boca do cavalo. O cavalo se reanimou, engoliu os dez morangos e o rapaz montou nele, partindo imediatamente, rápido como o próprio vento.

– Não se esqueça, não pode dar nenhum suspiro, mesmo que as chamas estejam queimando você ou o gelo ferindo seu corpo, senão você vai morrer! – gritou a velhinha.

Ofegante, o moço cavalgava cada vez mais para o interior dos rochedos, até chegar a um lugar cheio de chamas que saíam das entranhas da terra. O rapaz incitou o cavalo e atravessou a muralha de fogo. As chamas o queimavam e o asfixiavam, mas ele não deu nenhum suspiro. Já estava achando que as chamas iam acabar com ele, quando o cavalo deu um grande salto e eles foram parar num caminho bem estreito e bem sombrio por entre os rochedos. O caçula enxugou o suor da face e respirou a plenos pulmões o ar fresco incitando novamente o cavalo para continuarem a corrida. Andaram assim por muito, muito tempo, até que o rapaz começou a sentir um ar gelado. Ao longe ouvia-se um barulho estrondoso. Mais uma vez deu uma esperada no cavalo. Corriam como o vento, quando de repente o caminho estreito entre as rochas se abriu. O cavalo parou de sopetão. O rapaz começou a tremer de frio. Olhando em volta, percebeu que se encontravam no meio de uma inundação marinha. Até onde a vista podia alcançar, só se via gelo. Era uma imensa geleira com enormes icebergs ameaçadores que se chocavam com grande estrondo. Do outro lado da geleira, avistava-se, bem longe, uma alta montanha verde inundada pelo sol. “É a Montanha Ensolarada”, exclamou o caçula. “Rápido, meu querido cavalo, estamos quase chegando!” O cavalo, sem hesitar, jogou-se nas ondas geladas. Aquele gelo movediço queimava e feria a pele do cavaleiro, as ondas sacudiam-no e ameaçavam jogá-lo do alto do cavalo. Mas, o rapaz cerrou a boca e não deixou nenhum suspiro escapar de seus lábios. Quando já estava quase se afogando, o cavalo conseguiu alcançar a margem. O bom sol secou as roupas, cicatrizou as feridas e, antes que ele pudesse compreender o que se passava, já se encontrava no topo da montanha. Diante de seus olhos brilhava um palácio de cristal e, vindos do jardim, ouviam-se risos e cantos de umas jovens.

O rapaz entrou pelo portal de honra do pátio e apeou do cavalo. Viu na sua frente um grupo de belas moças ocupadas em tecer um pano. No meio delas encontrava-se o quadro de sua mãe. Ao perceberem o rapaz, as moças abandonaram seus teares e vieram ao seu encontro, rindo. Uma delas, bem miudinha, com um vestido vermelho, encantou-o particularmente. A seguir, uma bela dama aproximou-se do rapaz. Ela usava um vestido brilhante como os reflexos do sol no mar. Seus cabelos compridos estavam presos por um pente de ouro. “Sou a rainha das fadas”, disse. “Nunca ninguém vem aqui. Por que você empreendeu esta viagem tão cheia de perigos?”. “vim à procura do quadro de pano de minha mãe”, disse o rapaz, “o vento trouxe-o até vocês e minha mãe ficou doente por causa disso”. “Não foi por mero acaso que o vento levou o quadro de pano de sua mãe, fomos nós que ordenamos que fizesse isso. Queríamos nos servir dele como modelo para tecermos também um lindo quadro. Se você puder emprestá-lo por mais esta noite, amanhã poderá levá-lo embora. Enquanto isso, você é nosso hóspede”, falou sorrindo a rainha. O rapaz parecia viver um sonho. As fadas o rodearam rindo e fizeram com que provasse o néctar e a Ambrósia, como convém aos imortais. Logo em seguida, continuaram seus trabalhos. Ficaram tecendo a tarde todo a tarde toda. Ao cair o crepúsculo, suspenderam no teto uma pérola que brilhava na noite, para poderem continuar tecendo até meia-noite. O rapaz estava esgotado de tantas emoções e adormeceu sem perceber. Enquanto isso, as fadinhas acabavam, uma após a outra, seu trabalho no tear, indo se deitar. Somente a mais jovem ficou acordada, aquela que tinha agradado o rapaz à primeira vista. Ela ficou olhando o quadro da mãe. Nenhuma fada tinha conseguido tecer um quadro tão lindo quando o da mãe. Nenhum riacho brilhava tanto quanto aquele que tinha sido tecido com suas lágrimas e nenhum sol queimava tanto quanto aquele o que fora tecido com as lágrimas de sangue dela. A jovem olhou o rapaz adormecido e teve uma idéia. Pegou um fio e bordou no quadro da mãe uma fadinha de vestido vermelho, em pé, perto do lago, olhando para os peixes vermelhos.

O rapaz acordou à meia noite. A sala estava vazia. Só havia lá o quadro tecido pela mãe. Ficou um pouco a admirá-lo e depois pensou: “Porque esperar até amanhã? Minha mãe está doente e seu estado piora a cada dia”. Enrolou, pois, o pano, colocou o caso, montou o cavalo e se pôs a caminho. Foi em vão que as ondas do mar lançaram nele os maiores blocos de gelo e que as chamas do vulcão tentassem engoli-lo. O rapaz não deu suspiro nenhum e, antes que pudesse se dar conta, estava na frente da casinha de pedra. A velhinha já estava espiando a sua chegada pela porta. “Estou feliz em vê-lo de volta, meu filho. Você é um rapaz bom e valente. Você conseguiu o que queria. Eu vou devolver-lhe seus dentes”. Retirou os dentes do cavalo e os reimplantou na boca do rapaz. No mesmo instante o cavalo virou pedra. “Pegue estas sandálias de pele de cervo”, disse ainda a boa velha, “ao calçá-las, você retornará a sua casa no mesmo instante”. O rapaz agradeceu muito a boa velha pela sua ajuda, calçou as sandálias de pele de cervo e, sem saber como, foi parar na frente da casa onde tinha nascido. Uma vizinha aproximou-se ao vê-lo chegar. De cabeça baixa, disse a ele: “É bom que você tenha voltado. Ninguém sabe o que vai acontecer com a sua mãe. Não sai mais de casa, enxerga cada vez menos. Não sei, não sei…”. O rapaz entrou correndo em casa, gritando: “Olhe, mamãe, olhe logo!”. E mostrou o pano que tinha guardado debaixo de seu casaco. O quarto se iluminou todo quando ele desenrolou o brocado.

Quando a mãe percebeu que o filho tinha trazido seu quadro de volta, deu um grito de alegria. No mesmo instante, estava curada. Pulou fora da cama, surpresa ao ver as forças lhe voltarem. Olhou para o quadro e, de repente, estava enxergando muito bem. Depois, rogou ao filho: “Leve o quadro para fora, filho, para eu poder vê-lo melhor”. O filho levou o quadro até a luz exterior e o desenrolou. As cores brilhavam. De repente, houve uma ventania e o quadro foi se desenrolando mais longe, cada vez mais longe, até cobrir toda a paisagem em volta. Tão longe quanto se podia enxergar, viam-se campos de milho dourado, manadas de ovelhas, nuvens de pintinhos amarelos correndo por todo lado no meio de patinhos; um belo jardim, atravessado por um riacho e as mais linda flores. Das casinhas prateadas saíam agora os vizinhos, maravilhados, não acreditando no milagre. O filho pegou a mãe pela mão e a levou para o jardim. Foram devagar em direção ao lago, não se cansando de ver tantas maravilhas. De repente, o rapaz parou estupefato, o coração batendo a mil por hora. Perto do lago estava a fadinha miudinha de vestido vermelho a lhe sorrir. “De onde você vem?”, perguntou o rapaz. A mocinha se pôs a rir, piscando os olhos. “Eu me bordei no quando de sua mãe”, murmurou, “e você me trouxe junto. Já que o brocado tomou vida, meu lugar também é aqui”. A mãe a olhou feliz. “Temos agora uma grande casa e uma filha que me fazia falta”. A fada olhou para o rapaz, que se aproximou dela. “Você me aceita como esposo?”, perguntou baixinho. Ela respondeu que sim com um leve sinal de cabeça.

Houve uma grande festa de casamento. Além dos vizinhos, a mãe convidou os mendigos da região. Os irmãos maiores souberam de tudo. Já fazia muito tempo que haviam gasto todas as moedas de ouro e, como estavam acostumados a serem alimentados pelos outros, tornaram-se mendigos. Mas, quando chegaram à casa e viram as mudanças que ali ocorreram, tiveram vergonha de suas roupas esfarrapadas e preferiram não entrar. Foram embora, perdendo-se no mundo. O caçula, ao lado da mulher fada e da mãe, viveu feliz por muito tempo, numa região rica e ensolarada.             

          A história se inicia com um motivo que é bem comum nos contos de fadas: a dos três irmãos que vivem com apenas um dos pais, em uma família pobre. Os dois primeiros, muito ligados ao ter, possuem uma falha de caráter e o mais jovem e tolo, os redime.  A mãe possuía a habilidade de tornar a vida dos outros mais bela, mas não tinha condição de embelezar a de sua família e, portanto, a sua. Vivia em uma paisagem árida, sem água, portanto, ser cor.  E essa história explora justamente o tema do embelezamento da vida através das imagens, da arte que liga ao sagrado, através da cola da alma, as emoções . A trama trata, justamente da iluminação. Essa possibilidade é latente na mãe, mas por duas vezes há uma recusa do chamado, que é aceito apenas na terceira vez. O chamado, sua recusa e seu aceite, talvez esse seja o tema desses três irmãos. 

          Sim, esse e todos os contos de fadas partem de um chamado. Um chamado simbólico para: uma vida mais  mais feliz, para o autoconhecimento e para a conexão com a transcendência.

          No parágrafo acima, citei, com poucas palavras a chave para o estudo de todos os contos de fadas. Cada um deles pode ser interpretado nesses três níveis:  material/social; psicológico, de busca da identidade, e do encontro com Deus, ou algo que o valha. E é essa a minha intenção com esse texto e com minha provocação inicial: três não são apenas as personagens, mas também a perspectiva do olhar para a história.

No conto que lemos a mãe consegue, ao final, embelezar a própria vida, a do filho e da vila pela sua arte. Ela tece e borda a vida assim como o faz com seus brocados.

A crise começa após a mãe vender seus bordados, se encantar com uma tela, deixar de comprar alimentos para sua família e a adquirir, com o pouco recurso que tem, o bem desejado: um quadro  representa sua própria terra, porém mais rica, um reflexo iluminado daquele lugar. 

Vendo a representação, a mãe se enche de alegria, conhece sua verdadeira felicidade, porém isto não lhe basta. Ela ainda precisará fazer a parte difícil da jornada, a sua grande obra e a realiza sob inspiração do terceiro filho. Ela precisa dessa energia masculina da ação, que a faz reproduzir o quadro em um tecido, apesar da reprovação dos dois filhos mais velhos, que se preocupam apenas com o conforto material e mandam a mãe deixar essa ideia maluca para outra vida.

A mãe, inspirada, tece sua obra prima à noite, momento de conexão com o mundo dos sonhos e do inconsciente, e deixa nela suas lágrimas, seu sangue, suas emoções. Durante o dia, cuida da subsistência. Em uma reflexão rápida:  o contato com o mundo espiritual é nessa vida; são dois trabalhos, o de subsistência (ligado ao dia) e o espiritual (noite), sagrado e profano não podem se excluir.

Após três anos o pano fica pronto. Os filhos mais velhos, reconhecendo a beleza do quadro, pensam em vendê-lo, em levá-lo para o mundo, trocando-o por dinheiro. Porém a mãe deseja dividi-lo com vizinhos, que a pagam com sorrisos de felicidade. Ao perder o quadro a mulher entra em depressão, era o quadro que a conectava a seu eu verdadeiro, sem ele,  se transforma em casca penada. O tempo passa e ela pede primeiro para o filho mais velho e depois ao segundo para irem em busca do pano. Ambos não topam se sacrificar em prol da reaquisição do quadro da mãe, preferem continuar ligados ao mundo material, gastando seu parco ouro. Ambos receberam o chamado e desistiram da empreita. Apenas o terceiro aceita a jornada e cruza o fogo e o gelo e recupera a grande obra da mãe.

Na travessia do terceiro filho, há muitos elementos com carga simbólica: o cavalo de pedra, os dez morangos, os dentes. O cavalo, assim como a mãe bordadeira, está petrificado, sem tesão de viver. Para recuperar seu desejo de seguir em frente precisará comer os dez morangos, só que para isso precisa do jovem, de seus dentes. Por outro lado o jovem precisa do cavalo, de sua força instintiva, de sua natureza animal, para atravessar o fogo e o gelo. Aqui, é como se o rapaz se vestisse de cavalo e seguisse seus instintos, deixando seu antigo jeito de morder a vida para trás e a passasse a morder como o animal.

O rapaz chega até a montanha ensolarada e de lá traz sua fada e outra realidade que se sobrepõe à  sua. Ele entra em contato com o mundo imagético e enriquece a própria existência com ele. É isso que a arte, a literatura e as histórias fazem com o mundo: lhe dão cor, sabor e alegria e acima de tudo, são uma possibilidade de conexão com o espiritual. Esse conto trata, portanto, do dar sentido à existência, do ser, acima do ter. Ele é uma metáfora para o religar do ser humano com sua essência, à sua fadinha vermelha, à sua centelha divina.  É um conto iniciático, que explora o virar a chave do mundo da matéria, para que se possa, ver na própria matéria, ou ter acesso, ao sagrado.

Nos parágrafos acima, dei pistas de como podemos interpretar esse conto nos três diferentes níveis que citei. Num primeiro seria encontrar o sentido da vida, transformando os sonhos em realidade, embelezando a vida com algo que vá além do ter.

Num segundo nível, o sentido da vida passa pelo autoconhecimento, pelo encontro com o eu verdadeiro. A mãe viúva, possui a energia masculina em latência. Ela, repleta da energia feminina, borda e cuida da casa, precisará despertar seu lado masculino, sem ele não terá como caminhar rumo ao equilíbrio, transpondo suas tempestades internas e encontrar o seu centro, a fadinha vermelha.

E num terceiro, o enredo fala do mistério, da jornada da alma, e do que é necessário à transmutação: estar disposto e pronto à mudança; ter coragem para partir rumo ao desconhecido; cumprir sua tarefa sem hesitar; retornar e dividir o que conseguiu com aqueles que  a cercam.

Se a alma chama,  
 vai o príncipe
 rumo ao desconhecido.
 Se suspira,
 de mais filhos precisa.
Se demora,
é porque espera
a matura cura.
Se encontra,
sabe que a volta
é exigência da jornada,
ciclo de ciclos.

         

          Se “O quadro de pano” sobreviveu ao tempo e viajou até nossos ouvidos é porque é muito mais que um enredo tibetano. Ele é universal e atemporal, narra a viagem da alma, em busca da sua essência, da conexão com o espírito, quando  alma percebe seu exílio, deseja voltar à luz e tem coragem de cumprir sua jornada.

REFERÊNCIAS

BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Edições Paulinas, 1992. 

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