Só luta consigo
aquele que não conhece o inimigo.
Se o reconhece em si
junto empreita.
A comparação é uma forma bem interessante de se estudar contos de fadas. As semelhanças e diferenças apontam caminhos para a análise.
Leia uma versão do conto espanhol “O Príncipe Serpente”, que ouvi pela primeira vez dos “Tapetes Contadores de Histórias”, tendo por base os outros dois contos que já estudamos.
A essa altura você já sabe que precisa se perguntar o tempo todo: o que falta? Entendeu também que todas as personagens da história são um só, ou melhor, são as submentes da mente, são a personificação dos muitos eus de uma pessoa. “O Príncipe Serpente” é mais uma dessas histórias que retratam a luta do ser humano consigo mesmo.
Veja que o valor simbólico dessa história é infindável. São camadas sobre camadas que aos poucos vão se descortinando. Na sequência, aponto alguns possíveis caminhos para a discussão. O importante é que você converse com a história antes de ler o que eu coloco. Anote em um papel as imagens que mais lhe tocaram e as suas reflexões sobre elas e depois leia o que eu, com minha singularidade captei, lembrando que não existe certo e errado; não existe interpretação; existe diálogo, existe conversa.
O PRÍNCIPE SERPENTE
Há muito tempo atrás, num reino muito distante, havia uma rainha que tinha tudo o que o dinheiro podia comprar: joias, ouro, um lindo castelo, muitas terras e empregados. Só não tinha o que riqueza nenhuma dá: um filho. Ela queria muito dar um herdeiro ao reino e, por isso, dizem, fez de tudo para engravidar: foi a curandeiros, benzedeiras, médicos de todas as terras conhecidas. Dizem até que rezou para Deus e pro Diabo.
Um dia, sua barriga começou a crescer e crescer … e o reino se pôs em festa: o príncipe estava a caminho.
Porém, depois de nove meses a alegria se transformou num profundo silêncio: no lugar da tão esperada criança, nasceu um monstro, uma serpente.
Como naquela época não se matavam monstros, a alteza não tão real foi trancada num quarto, nas masmorras subterrâneas do castelo e por lá ficou,… só,… por muito tempo. No dia em que completou 18 anos, mandou chamar sua mãe a seus aposentos. Quando ela desceu as escadas, percorreu corredores sombrios e lá chegou, ele lhe disse:
– Minha mãe, eu quero me casar!
– Não, meu filho, você não pode se casar. – respondeu a rainha com muita calma. Porém, ele insistiu:
– Mãe, eu quero me casar.
– Não, meu filho, isso não é para você – respondeu a mãe, começando a ficar nervosa. Não satisfeito, ele fala olhando firmemente nos olhos dela:
– Mulher, eu quero me casar!
– Jamais, você é um monstro, ninguém iria se casar com você! – gritou a rainha, indignada.
Ele, num acesso de fúria, gritou também:
– Ou eu caso, ou você morre!
Ela, então, com medo, abaixou a cabeça e começou a procurar uma noiva para o filho. Como não tinha coragem de arranjar um casamento com uma princesa de um reino vizinho, passou a procurar uma aldeã para satisfazer os desejos do príncipe serpente.
Como a fama do monstro o precedia, ninguém quis dar a mão de uma filha para o filho da rainha. Ela percorreu a cidade, todos os vilarejos sob seu domínio e não conseguiu nada. Até que, quando já estava cansada de procurar, alguém lhe disse que, no final de suas terras havia uma mulher muito pobre, que tinha três filhas e que ela, provavelmente, trocaria uma das meninas por uns trocados.
Imediatamente, a rainha se pôs em direção à casa da pobre mulher. Chegando lá, disse que havia vindo buscar uma esposa para seu filho, a qual se tornaria princesa de todo aquele reino.
A mulher disse que dali não sairia nenhuma de suas filhas, pois sabia que o príncipe era um monstro. Porém, a rainha lhe ofereceu um saco de ouro. Os olhos da aldeã cresceram e a cobiça falou mais alto: a mãe mandou sua filha mais velha ao palácio, para ser desposada pelo herdeiro real.
A menina foi muito feliz encontrar o seu destino, imaginando como seriam seus vestidos, suas jóias, sua vida de fartura e conforto. Às portas do castelo, foi abordada por uma senhora que a chamou. Com muito orgulho no coração, dizendo a si mesma que seria a nova rainha, a menina achou que a velha não era digna de sua atenção e lhe virou o rosto.
Chegando ao palácio, a jovem ganhou um banho, um lindo vestido, jóias, perfumes e um grande baile. À meia noite a festa acabou e a princesa foi encaminhada ao quarto subterrâneo do príncipe serpente. Naquela noite reinou apenas o silêncio no palácio.
Na manhã seguinte, a rainha vai ao quarto do filho e vê uma cena lastimável: vestido, sangue, cabelos e ossos espalhados pelo chão. Ela entra em pânico, chorando pergunta a seu filho o que ele tinha feito, lhe diz que realmente era um monstro, um assassino. O príncipe, que já estava dormindo, entreabriu os olhos e sussurrou: “hum… adorei me casar…”
E o príncipe, como serpente que era, dormiu por seis meses.
Depois, mais uma vez mandou chamar a rainha à masmorra. Quando ela lá chegou, ele a olhou profundamente nos olhos e disse:
– Mulher, eu quero me casar, de novo.
A rainha se desesperou, disse que jamais ele casaria novamente. Gritou que ele havia comido a primeira menina e nunca traria outra para ser devorada. O príncipe armou um bote e a ameaçou num tom alto e forte:
– Mulher, ou eu me caso, ou você morre!
A rainha, com medo do filho, se calou e foi em busca de outra princesa. Bateu em muitas casas. Como só recebeu respostas negativas, se pôs, mais uma vez, à porta da pobre mulher que vivia nos confins do reino, com suas duas filhas. Num primeiro momento, a aldeã disse que jamais daria a mão de sua segunda filha ao príncipe, pois todos sabiam o que havia acontecido com sua filha mais velha. Mas, essa convicção deu lugar à ganância e à cobiça e ela trocou a filha do meio por dois sacos de ouro.
Enquanto era encaminhada ao castelo, a menina foi pensando em seus vestidos, em suas joias e que, com ela, tudo seria diferente, não teria o mesmo destino de sua irmã.
Quando ia entrar no palácio, foi abordada pela mesma senhora que tinha tentado conversar com sua irmã mais velha:
– Vem cá menina, quero te falar uma coisa…
Além de não dar ouvidos à anciã, a jovem lhe disse que seria a nova rainha, que ela, caduca como era, não teria nada a lhe aconselhar. Então, entrou naquela que seria a sua última casa, ganhou a toalete completa, um enxoval, uma festa. E, à meia noite foi encaminhada ao covil.
Na manhã seguinte, a rainha, mais uma vez foi ao quarto do filho. Desceu as escadas e encontrou a mesma cena desoladora: sangue, cabelos pelo chão e o príncipe, sobre a cama, chupando um ossinho.
Numa profunda tristeza a soberana se calou, abaixou a cabeça para ouvir de seu filho:
– Mulher, adorei me casar. Quero me casar de novo, hoje à noite. E sabe, se não me trouxer uma jovem, quem morre é você!
A rainha, então, sem opção, foi em direção à casa da pobre mulher, que agora só tinha uma filha. Chegando lá, não precisou falar o que queria. A aldeã já sabia, e lhe disse que jamais entregaria sua última menina.
Porém, a mãe do monstro lhe ofereceu 10 sacos de ouro e um grande pedaço de terra. O amor foi cegado pela ganância e, mais uma vez, a mulher vendeu o que tinha de mais precioso.
Diferente de suas irmãs, essa futura princesa tinha certeza de seu destino e foi, com profunda tristeza, rumo ao palácio. Chegando às portas do castelo, foi abordada pela mesma anciã que tentou falar com suas irmãs:
– Menina, vem cá, quero falar com você!
A jovem lhe dirigiu a atenção e, num sinal de cabeça, deu consentimento para que a mulher de cabelos brancos lhe falasse. A velha, até certo ponto assustada, disse-lhe:
– Você está me dando atenção, você acha que mereço ser ouvida?
– Sim – respondeu a moça – provavelmente a senhora tem muita experiência de vida, e, se quer conversar comigo, que logo vou morrer, preciso ouvir, pois, com certeza, falará algo importante.
A velha falou que tentou falar com as outras princesas que, porém, não quiseram lhe ouvir; que sabia como se livrar da maldição do príncipe; que se a menina quisesse, lhe ensinaria como. Quando falou isso, um raio de luz iluminou o rosto da futura noiva, que disse que sim, que faria qualquer coisa para sobreviver.
A menina, então, prestou muita atenção em cada palavra que saía da boca da velha senhora. Esta lhe disse que, quando chegasse ao castelo, precisaria se munir com a mais poderosa de todas as armas: a coragem. Depois, pedir três vestidos aos criados e colocar um sobre o outro. E, mais tarde, no quarto, a cada vez que o príncipe lhe mandasse tirar a roupa, deveria se agarrar à coragem (uma coragem que nem mesmo ela, a menina, sabe que tinha), olhar no fundo dos olhos do monstro e lhe dizer firmemente: “eu tiro, mas tire você primeiro a sua”.
E assim foi. A princesa fez exatamente o que sua conselheira disse. Entrou no palácio, pediu os três vestidos e colocou um sobre o outro. Depois da festa foi encaminhada ao quarto da serpente e, com muito medo, se colocou, de cabeça baixa, à frente do monstro. Este, armando um bote, lhe disse:
– Hum… você é muito bonita… Tire sua roupa…
Ela, lembrando-se dos conselhos da velha, respirou fundo, sacou a coragem do fundo do coração, levantou os olhos e respondeu:
– Eu tiro, mas tire você primeiro a sua.
O príncipe, já alterado respondeu:
– O quê, tire sua roupa menina!
– Eu tiro, mas tire você primeiro, a sua! – respondeu ela, com os olhos fixos aos dele, que, se curvando sobre ela, gritou:
– Tire sua roupa menina!
– Eu tiro, mas tire você, primeiro, a sua.
Como não conseguiu quebrar a convicção da menina, o monstrengo, com ar de deboche, disse que era uma serpente e podia sim tirar a pele. Então começou a se contorcer, a descascar como uma cobra no deserto e, daquele couro esverdeado saiu algo preto, peludo e fedorento, parecido com um cão ou um lobo. A princesa, então, tira o seu primeiro vestido.
– O quê? Outro vestido, tire sua roupa menina! – ele gritou.
– Eu tiro, mas tire você primeiro, a sua.
– Tire… sua… roupa… menina… – o cão rosnou entre os dentes. Escutou como resposta:
– Eu tiro, mas tire você primeiro a sua.
Sabendo, pelos olhos da virgem, que não tinha outra opção, o peludo vomitou uma pedra enorme, praticamente de seu tamanho. Ela, então, tirou seu segundo vestido. A pedra, então, quicando, muito brava falou:
– Tire sua roupa menina!
– Eu tiro, mas tire você primeiro a sua!
A pedra quicou mais e se rachou. De dentro dela saiu um lindo homem, o príncipe.
A princesa tirou o seu terceiro vestido. Os dois, então, ficaram frente a frente e quando os olhos dele encontraram os dela, os dois enamorados se apaixonaram profundamente e viveram uma linda história de amor.
E dizem que, ainda hoje, quando um homem e uma mulher cruzam seus olhares e se apaixonam neste primeiro olhar, os dois, o príncipe e a princesa, revivem esta linda história de encantamento.
Se você já foi a uma missa católica conhece esse trecho de oração: “desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia…” é inegável a relação. E claro, Espanha é um país católico e a história carrega muito dessa religião, tanto no enredo quanto na ideologia. Aqui o vilão consegue o perdão dos pecados, a redenção. O herói, ou heroína, precisou se sacrificar para exorcizar o noivo do mal e salvar o reino, que passa a viver feliz.
Exploremos as semelhanças das três histórias já estudadas:
No que se refere a espaços: nos três contos temos o mundo conhecido e o desconhecido. Nos três, o centro do mundo conhecido é o castelo e do desconhecido uma espécie de covil onde o conflito acontece.
No que se refere a personagens: em dois deles há a velha sábia, em Annaett, a voz sábia é a da futura princesa. Nos três falta a figura de um rei forte e viril.
No que se refere às cenas: nos três há a jornada, a ida às camadas mais inferiores da população para encontrar a cura, a troca de peles, o conflito, o casamento e o final feliz. Nos três os protagonistas vencem os vilões pela esperteza e pela coragem; se casam por amor, portanto são felizes porque o lado emocional passou a fazer parte do mundo da ordem, da consciência. Nas três há a redenção do reino que passa a existir feliz.
Colocaremos o foco em “O Príncipe Serpente”, tentando descortinar alguns de seus véus:
O conto conta a história de quatro personagens femininas ameaçadas por um monstro. A rainha e três moças são ameaçadas de morte por um príncipe serpente e o reino só é salvo quando o próprio príncipe toma ciência de quem realmente é, tira sua forma corrompida e mostra sua essência. Para essa redenção do príncipe foi necessária a sabedoria ancestral de uma velha, a grande arma mágica dessa narrativa, que só pode ser usada depois de um caminho de erro e aprendizagem das moças.
Algo bem marcante nesse conto são essas três moças. Inúmeras histórias trabalham com essa subdivisão: ou são três personagens – geralmente o primeiro opera pela força do instinto, o segundo pelo impulso e o terceiro pela sabedoria – ou três acontecimentos antes do desfecho final. Esses três eventos marcam a aprendizagem do protagonista (que, mesmo representado em três personagens, é um só). Existem várias formas de se interpretar esse número três. Poderíamos ler numa perspectiva da Santíssima Trindade ou do Tao. Por ora vou especular sob o olhar da psicologia analítica de Marie Louise von-Franz (“A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas”).
Imagine que a imagem abaixo é a totalidade do conto:
Agora coloque os três eventos das princesas:
Em quantas partes a história foi dividida? Em quatro. Isso ocorre porque o inconsciente busca a quaternidade. Segundo von Franz, em boa parte das histórias essa divisão existe e em muitas delas:
- A primeira parte representa simbolicamente como o inconsciente vê o consciente, percebendo “o que falta”;
- A segunda é o reino da ânima/animus, que pode ser representado em seu aspecto divino, como no caso de “Anaet”, ou no profano, ligado ao sexo, como na presente história;
- A terceira é o reino da sombra, onde há o conflito, onde o ego é quebrado e reconstruído;
- A quarta é o retorno, quando há a tentativa de integração, de união entre os campos, do casamento.
Especificamente no “Príncipe Serpente” temos uma força feminina (a rainha e as três moças), que precisa aprender a se relacionar com seu animus, seu inconsciente. Precisa entrar em conflito com os instintos e impulsos animais, controlar suas emoções destrutivas, superar a solidão, a pobreza e a fome para chegar a sua essência nua e ser feliz.
Tendo em vista essa totalidade, vamos conversar com o conto “O Príncipe Serpente”. Procure relembrar o que já estudamos nos dois outros contos.
O texto se inicia com uma rainha que tinha tudo o que o dinheiro podia comprar, porém não tinha filhos. Ela faz de tudo para engravidar, reza pra Deus e pro Diabo. Já no primeiro parágrafo temos a anunciação do problema, da crise, da necessidade de uma renovação. A rainha muito ligada à matéria, invoca magicamente a solução para seu problema. Estamos em áries e marte dá sua cara personificado no dragão vermelho, o diabo. Mais adiante ele se personificará o dragão negro, na própria serpente. Apesar da rainha se demonstrar muito passiva, com medo do próprio filho, aqui, por impetuosidade, por agir apenas com as emoções, faz um pacto que só será quebrado pela força da severidade, pela razão e pelo poder do amor.
Quando o bebê nasce, por ser monstro, é trancafiado, se tornando mais monstruoso com o tempo, e, de seu covil, amedronta o reino e indiretamente o domina. Mais adiante passa a exigir sacrifício e continuaria com sua fome até toda a possibilidade de renovação do reino ser extinta, caso não tivesse sido impelido a tomar uma nova atitude. Ou seja, o mal foi encapsulado e jogado no inconsciente e de lá infecta o reino que só viverá feliz quando o príncipe vier à luz.
Deixo aqui dois questionamentos: o que nasceu: um vilão ou um herói? O príncipe nasceu monstro ou se tornou monstro quando foi trancado nas masmorras do castelo?
Não tenho a intenção de achar uma resposta para isso, mas posso traçar alguns comentários: o herói possui uma origem divina, tem uma infância ruim e geralmente é príncipe ou algo que o valha. No mesmo momento em que ele nasce, nasce seu opositor, especialmente planejado para lhe destruir. O vilão, portanto, tem as mesmas possibilidades do herói, porém não consegue cumprir sua jornada de transformação e fica preso na escuridão porque não foi capaz de abrir mão de ser o que imagina ser, do que imagina ter. Nosso príncipe serpente precisou da coragem de uma pobre jovem moça para ser redimido. Ele, pela ação dela, arrancou cada uma de suas peles e encontrou a sua essência. Isso é um ato heroico.
Se pensarmos na estrutura física do castelo, temos a representação da própria árvore de vida, que liga o mundo material às esferas divinas e ao mundo das trevas. Na árvore, o caminho é traçado pela serpente, assim como em qualquer conto de fadas o protagonista está diante do caminho para encontrar a sua individuação.
Essa história representa muito bem esse caminho iniciático, porque para avançar por ele é necessário retirar as máscaras criadas, se deparar com a sombra, para chegar ao seu final nu, na essência primordial. O príncipe faz o caminho de integração guiado pela jovem, e ela pela coragem que supera o próprio medo causado pelo monstro.
A rainha é a alma das princesas ligadas ao aspecto material e à sombra. Seu caminho é o do sofrimento, precisou inclusive morrer e renascer duas vezes para estar pronta a ouvir a velha, agir com o coração, enfrentar a realidade ao invés de se deixar possuir por ela. Por muitas vezes a energia masculina do conto a ameaçou e por duas a devorou. Apenas na terceira vez ela se apropriou de uma atitude de comando que a levou à integração.
A velha que dá conselhos é uma representação da essência primordial. E quem é essa velha? O que é essa sabedoria que não se aprende, apenas se sabe? Que às vezes fica esquecida ou não é ouvida… Alguns a consideram como a essência da jornada, a verdadeira vontade, a missão sagrada e/ou o que sobra das jornadas: é a voz dos egos desencarnados, a aprendizagem das outras vidas que trazemos secretamente carimbada na alma. Ela é a voz sábia. E sobre essa voz Marie Louise Von-Franz, em “ A sombra e o mal nos contos de fadas”, coloca que a única regra que se apresenta dos contos é essa: se a protagonista não der ouvidos à voz da sabedoria (da velha, de um animal…), abraça a morte e a ruína.
A menina vê a verdade nos olhos, com a ilusão desfeita, só, dentro do covil, enfrenta o monstro e lhe tira as roupas ao mesmo tempo que também se desnuda. É a primeira vez que o feminino age com a razão, evocando uma energia diferente. Ela está pronta para se casar com seu lado masculino. A aprendizagem foi dura. Ela precisou sacrificar boa parte de sua personalidade para poder, depois, renascer.
O príncipe não é um monstro qualquer. É uma serpente. É oroboros, a serpente celestial ou kundalini? São todas. São o caminho para a evolução espiritual. Ao mesmo tempo que mora num quarto do submundo, é a possibilidade da alma transcender, liga o inferno ao céu. A princesa precisou descer ao inferno do inferno, onde o que reina é o frio da pedra, para encontrar seu príncipe, após pagar o preço, encontrar a verdade e se salvar.
E por que sempre o mais fraco, o mais jovem, o mais bobo vence o mal? É justamente porque é o menos teimoso, com o ego mais mole, mais fácil de ser quebrado. É porque vê a vida de forma mais simples, não se ilude, está mais ligado ao mundo espiritual, tem menos ganância.
E por que esse festival do tirar a pele, do tirar máscaras? Porque essa história fala do início ao fim de quebrar o ego para que a essência possa nascer. E para que essa essência surja é necessário um conflito e um mergulho às camadas mais profundas e uma resistência aos instintos ao mesmo tempo é necessário uma acomodação dessa parte animal à estrutura consciente. É necessário também retirar as várias máscaras que se sobrepõem ao eu verdadeiro, às personas que se criam sobre ele, que o protegem das ameaças do inconsciente.
Foi depois de um processo longo de purificação, que feminino e masculino chegaram ao centro da jornada nus, sem véus, sem máscaras, sem teimosia e puderam renascer com um novo ego. Foi depois de um longo processo de autoconhecimento que o indivíduo, representado por todas as personagens, conseguiu se livrar das marés astrológicas que o acorrentavam, descobrir quem realmente é e ser feliz.
E esse é o grande tema de todas as jornadas da vida e das vidas: a quebra e a reconstrução do ego: seu despedaçar em cacos e sua reconstrução com amálgama de ouro. Aqui chegamos ao final de um processo de individuação. Foi necessário o sacrifício, o sacro ofício, o trabalho sagrado. Ele não se encerra aí, pois um dia surgirá a necessidade de um novo príncipe, de uma nova jornada de transformação. E mais uma vez um jovem precisará descer às esferas inferiores do castelo, buscar um elixir no mundo subterrâneo e voltar de lá com a cura sagrada a cura do amor e do aconchego da alma.
Aqui encerro o texto com uma fórmula alquímica:
“Visita o interior da terra, retificando-te, encontrarás a pedra oculta.”
REFERÊNCIAS
VON FRANZ, Marie-Louise. A interpretação dos Contos de fadas. São Paulo: Paulos, 1990, 225 São Paulo: Paulinas, 7º ed. 2008
_____________. A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Paulinus, 1985. pg 272.
___________. A individuação nos contos de fadas
___________. Ânima e animus nos contos de fadas