As histórias encantam porque são como diamantes: possuem múltiplas facetas, que refletem a luz que se se projeta sobre elas. Quando contamos, ouvimos ou lemos uma narrativa espelhamos em seus personagens o que nos habita, nossos medos, amores, emoções, aflições. Mergulhamos nela para mergulhar em nós mesmos e mais do que conhecer aos outros, as histórias possibilitam conhecer ao outro que vive em nós.
Normalmente, o autoconhecimento exige vida vivida, sangue, suor e muitas lágrimas: não somos quem desejamos ser ou pensamos que somos – a única certeza que podemos ter é que as certezas se enrijecem, petrificam e ruem como pó. As histórias, mais do que metáforas, são atalhos confortáveis deste processo.
Proponho agora a leitura deste conto da tradição sufi (vertente mística do islamismo, cujo ápice foi entre séc. VIII e XIII d.C), que trata justamente desta quebra do paradigma do eu.
A Princesa Obstinada
Um certo rei acreditava que o correto era que lhe haviam ensinado e aquilo que pensava. Sob muitos aspectos era um homem justo, mas também uma pessoa de ideias limitadas. |
Um dia reuniu suas três filhas e lhes disse: – Tudo o que tenho é de vocês, ou será no futuro. Por meu intermédio vieram a este mundo. Minha vontade é o que determina o futuro de vocês, e portanto o seu destino. Obedientes e persuadidas da verdade enunciada pelo pai, duas das moças concordaram. Mas a terceira retrucou: – Embora a minha posição me obrigue a acatar as leis, não posso acreditar que meu destino deva ser sempre determinado por suas opiniões. – Isso é o que veremos – disse o rei. |
Ordenou que prendessem a jovem numa pequena cela, onde ela penou durante alguns anos. Enquanto isso, o rei e suas duas filhas submissas dilapidaram bem depressa as riquezas que de outro modo também seriam gastas com a princesa prisioneira. O rei disse para si mesmo: “Essa moça está encarcerada não por vontade própria, mas sim pela minha. Isto vem provar, de maneira cabal para qualquer mentalidade lógica, que é minha vontade e não a dela que está determinando seu destino.” Os habitantes do reino, inteirados da situação de sua princesa, comentaram: – Ela deve ter feito ou dito algo realmente grave para que um monarca, no qual não descobrimos nenhuma falha, trate assim a sua própria filha, semente viva de seu sangue. Mas ainda não haviam chegado ao ponto de sentir a necessidade de contestar a pretensão do rei de ser sempre justo e correto em todos os seus atos. De tempos em tempos o rei ia visitar a moça. Conquanto pálida e debilitada pelo longo encarceramento, ela se obstinava em sua atitude. Finalmente a paciência do rei chegou a seu derradeiro limite: – Seu persistente desafio – disse à filha – só servirá para me aborrecer ainda mais, e aparentemente enfraquecerá meus direitos caso você permaneça em meus domínios. Eu poderia matá-la, mas sou magnânimo. Assim, me limitarei a desterrá-la para o deserto que faz divisa com meu reino. É uma região inóspita, povoada somente por animais selvagens e proscritos excêntricos, incapazes de sobreviver em nossa sociedade racional. Ali logo descobrirá se pode levar outra existência diferente daquela vivida no seio de sua família; e se a encontrar, veremos se a preferirá à que conheceu aqui. |
O decreto real foi prontamente acatado, e a princesa conduzida à fronteira do reino. A moça logo se encontrou num território selvagem e que guardava uma semelhança mínima com o ambiente protetor em que havia crescido. Mas bem depressa ela percebeu que uma caverna podia servir de casa, que nozes e frutas provinham tanto de árvores como de pratos de ouro, que o calor provinha do Sol. Aquela região tinha um clima e uma maneira de existir próprios. Depois de algum tempo ela já conseguira organizar sua vida tão bem que obtinha água de mananciais, legumes da terra cultivada e fogo de uma árvore que ardia em chamas. “Aqui”, murmurou para si própria a princesa desterrada, “há uma vida cujos elementos se integram, formando uma unidade, mas nem individual ou coletivamente obedecem às ordens de meu pai, o rei.” |
Certo dia um viajante perdido, casualmente um homem muito rico e ilustre, encontrou a princesa exilada, enamorou-se dela e a levou para seu país, onde se casaram. |
Passado algum tempo os dois decidiram voltar ao deserto, onde construíram uma enorme e próspera cidade. Ali, sua sabedoria, recursos próprios e sua fé se expandiram plenamente. Os ‘excêntricos’ e outros banidos, muitos deles tidos como loucos, harmonizaram-se plena e proveitosamente com aquela existência de múltiplas facetas. A cidade e a campina que a circundava se tornaram conhecidas em todo o mundo. Em pouco tempo eclipsara amplamente em progresso e beleza o reino do pai da princesa obstinada. Por decisão unânime da população total, a princesa e seu marido foram escolhidos como soberanos daquele novo reino ideal. |
Finalmente o pai da princesa obstinada resolveu conhecer de perto o estranho e misterioso lugar que brotara do antigo deserto, povoado, pelo menos em parte, por aquelas criaturas que ele e os que lhe faziam coro desprezavam. |
Quando, de cabeça baixa, ele se acercou dos pés do trono onde o jovem casal estava sentado e ergueu seus olhos para encontrar os daquela soberana, cuja fama de justiça, prosperidade e discernimento superava em muito o seu renome, pôde captar as palavras murmuradas por sua filha: – Como pode ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino e fazem sua própria escolha. Do livro: Histórias da Tradição Sufi – Editora Dervish |
“A princesa obstinada” é uma ferramenta didática muito boa para se explicar o que é um conto de fadas. Apesar de curto, possui muitos elementos que são recorrentes a este tipo de narrativa: há um monarca sem consorte; o reino fica estéril; o núcleo familiar é composto por um genitor e três filhos, no caso filhas, sendo que as duas primeiras possuem uma atitude parecida com a do pai e a terceira é aquela que quebra com a ordem vigente, faz algo diferente e se transforma durante uma jornada de aprendizado, rumo à sabedoria; o espaço é dividido em três grandes lotes, o reino do pai, uma zona intermediária e um núcleo, de onde vem a energia para renovar o mundo; a princesa encontra sua porção masculina e, ao lado dela ergue um reino de felicidade.
Com a introdução acima, provavelmente você, leitor, já percebeu a intencionalidade deste texto: explorar a ideia de que um conto de fadas é uma grande metáfora para os processos psíquicos de harmonização entre consciente e inconsciente, um grande mapa da psique sob a óptica da psicologia analítica, e a descrição de uma grande viagem às profundezas do ser humano. Assim, lhe convido a explorar a trama deste conto, já avisando que minha análise é ínfima, perante a grandeza de conteúdo que ele carrega. Descortino aqui apenas alguns véus de um universo multifacetado.
Começo com a figura do rei: senhor soberano da consciência que se considera único e supremo, líder do domínio do ego. Ele é aquele que diz: eu sei, eu tenho, eu posso. Já no início do conto fica claro que é prepotente, está rígido, seco e desgastado, como uma mulher dominada pelo seu ânimus, e precisa de renovação. Lhe falta uma rainha, sua porção feminina, que se apresenta imatura, na figura das três filhas. O rei precisa de ajuda, que é dada num primeiro momento, de forma ineficaz, pelas princesas mais velhas. Porém o auxílio não está no plano consciente. Ele precisa vir de outro reino, pelas mãos de sua filha mais jovem, a tola e desprezada caçula.
Von Frans (2008) relaciona este quarteto – genitor e três filhos – às quatro funções psíquicas descritas por Jung: sensação – intuição, pensamento – sentimento. Cada pessoa possui uma função predominante, a superior, simbolizada no caso, no rei, que é auxiliada por outras duas. Se há uma dominante, uma delas, a sua oposta será reprimida e resguardada pelo medo e é justamente esta, a terceira princesa, que salvará o reino num ato de coragem. Se uma pessoa se cria num ambiente onde o intelecto é predominante, provavelmente seu lado sentimento é colocado num calabouço, porém, para essa ser completa, em determinado momento da vida, o aspecto reprimido precisará ser iluminado. É por isso que o herói é sempre o mais frágil: é ele quem traz uma nova forma de vida e de ver o mundo.
Apesar de tentador, talvez seja perda de tempo tentar classificar reis, rainhas, príncipes e princesas de contos de fadas de acordo com as funções psíquicas. Afinal, as histórias são como diamantes, refletem a luz projetada sobre elas. É característica das narrativas arquetípicas serem uma forma universal onde cada contador ou ouvinte coloca e projeta a sua massa pessoal.
É claro que podemos fazer análises e suposições, e aí eu projeto a minha luz: o rei tinha dois problemas: possuía ideias limitadas e sua vontade era muito cristalizada. O primeiro ligado ao intelecto e o segundo ao campo da intuição. Na jornada a princesa precisou encontrar o amor e aprender a se relacionar com o ambiente: a solução veio pelo campo do sentimento e das sensações.
Se voltarmos à sequência do enredo, vemos que o rei reluta e tenta vencer o chamado da alma, quando tenta mudar a opinião da filha aprisionada. Como não consegue, a coloca no exílio dos irracionais e é justamente neste momento que toda a água da vida seca no reino.
No deserto, ela aprendeu em uma jornada mercurial a reconhecer e a integrar e equilibrar os elementos de seu mundo interno: água (emoções), terra (sensações), ar (intelecto) e fogo (vontade), os quais se tornaram ferramentas para criar uma nova realidade pautadas no equilíbrio. A princesa poderia ter parado sua jornada aí, mas este não é o ponto final. O terreno foi reconhecido, semeado, mas ela não pode ficar presa nesta confortável zona intermediária; ela precisa ainda libertar sua essência que iluminará substancialmente este espaço e o reino do pai
A divisão do espaço dessa narrativa é muito significativa: é a mesma de muitos contos de tradição oral: a casa paterna, uma zona intermediária e um centro, o centro do mundo. A princesa sai de sua cidade natal e vai à zona desconhecida, um deserto cercado por uma campina e precisa ir mais longe, ao reino do marido para depois retornar e salvar os habitantes do deserto e sua família. Von Frans (1984) , tratando do tema da individuação, compara a psiqué a uma grande esfera com um ponto de luz refletida; a pequena parte iluminada, clara e brilhante representa a consciência e seu centro, o ego; o restante da esfera seria o inconsciente, sendo que o seu centro seria o domínio do self (que é ao mesmo tempo o núcleo e a esfera inteira). É impossível não fazer a relação entre estes dois mapas.
O que é comum também a muitos contos é esta expansão do reino inicial. O herói salva este espaço e o amplia, ligando-o a um novo bocado de terra, rico e próspero. É como se consciência fosse ampliada e o ponto de luz sobre a esfera ganhasse diâmetro.
É claro que a expansão sempre se dá após uma grande jornada. A princesa precisou confrontar seu pai, equilibrar os elementos, e ficar pronta para o encontro com sua porção masculina perdida. Só assim pode ter acesso ao centro de sua psique e trazer de lá o que falta a seu reino; só assim o casal de jovens pode se tornar soberano e atrair o rei, o ego, que na sequência final se quebra, aceita o novo e se abre para a transformação, para a integração da consciência com arquétipos inconscientes, deixando de ser tirano de si mesmo.
Com o ego iluminado, a princesa tem em mãos o seu destino, sua missão e sua felicidade. Aqui a princesa assume sua natureza e torna-se o que realmente é. Esse é o dilema comum a todos os contos arquetípicos: a transformação da alma através da entrega a seu destino.
Iniciei o texto falando de autoconhecimento: temos outra matéria movediça dentro de nós, alheia ao nosso desejo e à nossa teimosia, composta por ondas que se chocam, se ampliam ou se dividem, tomam novos rumos e novas direções. O sábio é aquele que vivencia este processo, ampliando a luz sobre a sombra, amadurecendo com ele, para se tornar inteiro no felizes para sempre, ou até a próxima jornada.
VON FRANZ, Marie-Louise. A interpretação dos Contos de fadas. São Paulo: Paulos, 1990, 225 São Paulo: Paulinas, 7º ed. 2008
________________ A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.
JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.