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O REI E A RAINHA, O PRÍNCIPE E O REINO

Todos os contos de fadas iniciam-se no “era uma vez”, do tempo sem tempo, até que “um dia”, o tempo entra no jogo e um jovem precisa cumprir um caminho de provas, desafios e aprendizagem. Precisa sair do seu lar, encontrar a parte que lhe falta e retornar para casa transformado. Como, na maior parte das vezes seus personagens fazem parte da realeza, parecem ser muito fantasiosos. Porém, se levarmos em consideração que histórias de diferentes épocas de diferentes lugares exploram a configuração da família como uma composição de rei, rainha, príncipe e princesa, há algo a se intuir.

Talvez seja porque toda criança nasce com um conceito de pai e mãe em baixa resolução, que, aos poucos  vai se configurando em um padrão, que se reflete na família real. Muitas pessoas chamam isso de arquétipo. Eu, particularmente não gosto de nomear como tal, pois sei que cada uma dessas figuras podem assumir imagens arquetípicas muito diferentes umas das outras. Um rei pode ser o Sábio Pacifista ou o Guerreiro Tirano – a energia do primeiro é muito diferente da energia do segundo. Por isso sou adepta aos estudiosos que chamam estas personagens de categorias arcaicas e este é o tema do presente texto.

Em vias de regra, o rei representa a semente, aquele que cria, mantém as regras e as leis. Pode ser o rei que consegue isso através do fogo da guerra, da sabedoria, pela ordenação material, ou pela sensibilidade. Na maior parte das histórias, está velho ou é tirano, seus dogmas, ideias e ideiais não são mais compatíveis com seu tempo. Quando surge a crise do “até que um dia” está estagnado, automatizado, sem capacidade para aprender o novo, está com um problema e precisa de um filho para renová-lo e renovar o mundo. Porém, este não pode ser a cópia do pai, ele precisa aprender ou descobrir quem é, seus desejos, sua verdadeira vontade, para depois reviver e renovar o pai. Não é difícil fazer um paralelo deste reino com a vida psíquica. O rei é a atitude consciente, o ego, que não consegue se renovar, seus dogmas o impedem de se movimentar, está petrificado, preso a paradigmas e neuroses. Ele precisa de uma nova atitude consciente que, buscando água fresca no fundo mais profundo de si mesmo, o salve. 

Talvez seja por isso que o rei, assim como sua consorte, não sai do castelo e seu problema é refletido na jornada do príncipe, tanto o é que, para você compreender a energia do conto precisa se perguntar: “QUEM É O REI?”.

E para explicar quem ele é, vou emprestar, de forma rudimentar as ideias de Karl Gustave Jung.

Segundo este médico, existem quatro funções psicológicas básicas: pensar, sentir, intuir e perceber. Como o próprio nome diz, a primeira é o pensar afiado feito espada que fatia a realidade e a analisa, ligado à razão. A segunda é ligada aos sentimentos, nosso ponto cego, que se movimentam como as marés. A terceira é a intenção, o fogo o que nos alimenta e faz ir em frente, é o cajado do sábio que aponta o caminho, a batuta do maestro que rege o andamento da orquestra. A última são as sensações que nos protegem como escudo e nos ancoram à terra deste mundo. A partir das quatro funções básicas,  Jung postula que se formam dois grandes tipos de caráter, o introvertido e o extrovertido e a combinação de todos esses aspectos formam a personalidade.

Se você leitor tem o pé na mística sabe que no parágrafo acima fiz questão de explorar  os quatro elementos –  AR, ÁGUA, FOGO e  TERRA – que se refletem nos quatro naipes do baralho – ESPADAS, COPAS, PAUS e OUROS – e a ideia de energias femininas e masculinas – YNG e YANG. Então, os reis dos contos de fadas também estão nas cartas da corte tarot, assim como a rainha, o príncipe e a princesa (mesmo que não sejam essas as figuras, os símbolos representam esta quatro forças).

O rei ordenador e o príncipe explorador são as energias masculinas que impulsionam a ação, mesmo que não sejam representadas em personagens deste sexo.

  O rei de espadas, preso em seus pensamentos abstratos, em seu aspecto positivo é sagaz, sutil, inteligente, acertivo, sábio; já no negativo é instável, imprevisível, ardiloso, dominador, enganador. Como olha para frente, sua retaguarda é desprotegida e sua sombra são as emoções.

 O de copas pode ser sensível, generoso, intenso, criativo, protetor ou superficial, fútil, apressado. É enigmático e sabe manipular pois conhece todos os tons da natureza humana. Sabe ser perverso, e vingativo agindo sempre nas sombras, comendo sempre pelas beiras.

Ser ativo, generoso, ardente e impetuoso ou cruel, brutal, fanático e intolerante são características de fogo do rei de paus. Vive sempre dentro de um mito, por isso não tem pés no chão e se frusta quando não está em ação, iniciando algo novo. Por isso a sombra que o assola são os problemas do dia-a-dia, a matéria e seu corpo.

 Já o de ouro, ligado à terra e aos bens materiais é aquele laborioso, provedor , civilizador e fecundo ou o lento, ganancioso, invejoso e covarde.  Lhe faltam imaginação, fé e esperança.

O príncipe, como já coloquei é também energia masculina do conto. É jovem e se movimenta; na história se sacrifica, perde aquilo que imaginava ser na vida e se reconstrói, com uma nova personalidade. O que ainda não citei é que o seu lado sombrio também é personificado no vilão da história – é por isso que protagonista e vilão, a via de regra, sempre são do mesmo sexo e representam uma dualidade.   

O príncipe é a criança do céu e da terra. Sua origem é parcialmente divina e sua missão é traçada ao nascer. É aquele que atravessa a ordem e o caos, sobrevive a esses mundos e se torna senhor dos dois. É  o reconciliador, o redentor, o Messias, o Salvador da princesa, que durante a jornada se transforma, se salva e o reino.  É por isso que  é simbolizado pelo Sol, aquele que carrega a centelha divina (por isso loiro) e assim é capaz de dar uma solução nova, imprevisível, para um problema antigo. Ele vai voluntariamente atrás do dragão com valentia e coragem, o enfrenta, o vence pela astúcia e paga o preço, pois precisa abrir mão de parte de si mesmo para que a transformação aconteça e ele próprio não se transforme em vilão. Depois precisa voltar ao pai, honrando-o e substituindo-o, revigorando-o. Algumas vezes é representado por três irmãos ou irmãs. Na missão, os mais velhos fracassam e só ele, o mais jovem consegue desenvolver suas habilidades e agir em benefício da humanidade: é a criança que consegue entrar no reino dos céus, isso é bíblico.

Poderia classificar o príncipe viajante pelos naipes ou pelos elementos, como fiz com o rei, mas prefiro ir por outro caminho (meu ascendente é gêmeos), afinal, muitas vezes o príncipe possui companheiros de jornada que simbolizam as funções psicológicas que explorei com a figura anterior: o pensar, o intuir, o sentir e o perceber e só quando ele consegue harmonizar estas forças está pronto para a luta com a sombra e para se aproximar da princesa. Vou caracterizá-lo de uma forma um pouco mais sutil: nos signos do zodíaco. Se o signo solar é nossa essência e o ascendente é o ligado a cada encarnação, teríamos 12 x 12 possíveis perfis desta personagem, o que seria impossível de discorrer aqui. Por fins didáticos, vou optar pelo básico, as relações possíveis ficam com você, leitor. Só não esqueça que cada conto de fadas é a busca simbólica do ego protagonista daquela jornada,  pela sua totalidade, o self.

O príncipe EU SOU ariano precisa de aventura, se não tem crise, cria uma. Suas vontades o movem como fogo morro acima. É violento e usa a força bruta pois é guerreiro de marte. Sua sombra é o dragão vermelho que cospe fogo e aniquila, quer dominar a tudo e a todos. Se tudo der certo, a jornada traz a purificação.

O taurino EU TENHO é paciente, ingênuo e gosta dos prazeres da carne. Tem sentidos apurados  e para se mexer precisa levar uma bela ferroada. Sua sombra representa o conflito homem x animal. Sua jornada é a de redenção.

O EU PENSO geminiano é aquele impresivível que borboleteia pelo mundo, pelas coisas e entre as pessoas. Sua sombra pode ser a criança irresponsável ou o trickster conspirador e mentiroso; a jornada, de aprendizagem.

O amoroso ou ressentido EU SINTO, que precisa de uma couraça de proteção está em câncer. Ele não batalha, mas dá voltas. A sua sombra ludibria, esconde e manipula.  Na sua jornada busca relacionamentos, de nutrição.

O leão é herói, sabe que é herói e mostra o EU QUERO. O mundo é seu palco e seu ideal é a meta. Para ele só existe o certo e o errado, o branco ou o preto. Sua jornada é de quebra da crista, de aceitação e entrega.

Virginiano EU ANALISO  é realista e tem o pé no chão e sabe fazer tudo. Sua sombra é tóxica, obcessiva e avarenta. Sua jornada é de cura, maturação e sabedoria.

O libriano é o diplomata e acredita que a vida é uma balança no EU EQUILIBRO. É preso a ideiais platônicos, não suporta conflitos e usa lentes rosas para ver o mundo. Sua sombra incita o ódio e quer paz a qualquer preço. Sua jornada é de justiça, de embelezamento do mundo.

O EU DESEJO que está em escorpião não ataca, mas se defende mortalmente: mata a aranha e destrói a teia. É profundo, enigmático e conhece o cheiro de enxofre. Sua sombra é o dragão negro que cospe veneno e leva à transformação.

O sagitariano lança flexas e as persegue no EU ENTENDO. Para ele a vida e sua jornada é uma viagem rumo ao sublime, à recompensa. Sua sombra não tem compaixão.

O capricorniano é aquele que não dá ponto sem nó, pois é o príncipe do EU USO. Possui metas palpáveis, nunca sonhos. Sua sombra possui uma visão pragmática e quer preservar as tradições do mundo, doa a quer doer, mate a quem matar. Sua jornada é pragmática, rumo às tradições do passado.

Aquário, o príncipe do EU SEI,  deseja mudar o mundo, possui ideias claros e por isso é inabalável. Sua sombra joga o bebê com a água do banho. Deseja um mundo novo. Sua jornada é de redenção.

E, por fim, peixes é o mutável, o EU ACREDITO maleável, que vive para servir ou sofrer. Tem um pé no céu e outro na terra. Sua sombra é o próprio diabo, aquele que tem poder sem limites. Sua jornada é de dissolução.

Antes de passar para as energias femininas do conto preciso retomar: todo herói tem um antagonista especialmente planejado para ele; se o herói deseja harmonia e consonância, o vilão deseja dissonância e discórdia, deseja escravizar ou destruir. O vilão, ou a sombra, é o caos que deseja devorar a ordem; nossos instintos básicos, traumas que se encapsulam no inconsciente e dominam o consciente; recordações que não consigo matar; zumbis, orcs ou forças cegas que se recusam em morrer;  . É o desejo de poder, de domínio, de destruição que todo mundo tem. Uns são muito feios, com características animalescas; outros, cativantes. Podem tentar ganhar o jogo pela violência, pela desolação ou infecção. Podem ser os monstros das profundezas que pretendem assolar o mundo e torná-lo escuro e sombrio; os que usam seus poderem para paralisar o inimigo e torná-lo inoperante ou os que usam de seu poder de manipulação para enganar e ludibriar suas vítimas e sentem prazer nisso.  O importante a saber é que da sombra que nasce  tanto a atitude heróica como a amargura que pode tornar o herói vilão de si mesmo e do reino. Uma sombra não integrada leva à corrupção e à autodestruição.  Somente uma ação consciente e responsável transforma a sombra em amiga, redentora.

E é com essa ponte que inicio a exploração dos aspectos femininos da psiquê, expressos nas figuras da rainha e da princesa. A sombra só pode ser enfrentada com a energia da ânima. O herói precisa se fundir com seu aspecto feminino, aprender com ele e assim cumprir a sua missão.

A rainha, consorte do rei, também não participa da jornada e não se transforma. O papel dela é gerar coisas, inclusive desejos de mudança, por bem ou por mal. São Eva, Pandora, as madrastas, as mães; pode ser dominadora, inteligente, generosa, criativa ou usar todo o seu poder para castrar o príncipe (caso das madrastas dos contos). O importante é ver como é ela quem envia à jornada, envia ao mundo físico. É graças a ela que o herói surge: se não fosse a mãe irresponsável de chapeuzinho, não conheceríamos a história da menina.  Essa energia é a escada que leva ao céu. É água que nutre ou devora,  a energia que faz a história acontecer, que cria o tempo, a crise, tira da estagnação e da ordem, que ensina as coisas mais importantes da vida. Nas histórias, às vezes é representada por uma mulher, mãe ou madrasta, ou por pessoas que estão nos bastidores do castelo, como conselheiros que portam o conhecimento. Podem ser, também, a própria crise, o caos, o tempo, o “até que um dia”.

Em contraponto, a princesa é o que ou quem precisa ser salvo. Ela, portanto, é o próprio reino, o mundo da matéria. Ela está aprisionada junto à sombra, ao dragão, aos traumas, que  transformados em vícios ou neurores,  a impedem de seguir seu destino. A  princesa precisa ser pura e fértil para poder gerar algo novo, perpetuando o ciclo do herói, só assim se tornará rainha  e enviará ao mundo outro príncipe que precisará equilibrar os quatro elementos, as quatro armas mágicas, tomando-se uma nova personalidade que salvará a mundo mais uma vez.

Esclarecendo e resumindo: o príncipe é aquele que religa o mundo material ao mundo espiritual. Se é assim, a princesa não é a mocinha casadoura. Ela é a alma aprisionada na matéria, a terra, o próprio reino, que precisa despertar e encontrar seu príncipe. Ela é cativa de um vilão, que enquanto a prende lhe ensina a se relacionar com ele próprio e lhe dá instrumentos culturais para compreender o mundo simbólico: arte e cultura que a liga aos arquétipos, ao mundo espiritual, ao príncipe, lhe dá a possibilidade do casamento e do felizes para sempre.

WANG, Robert. O Tarô Cabalítico: um manual de filosofia mística. Editora Pensamento, São Paulo: 1994.

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